Digamos que você está reunido com sua família e de repente aquele primo bem-humorado começa a relembrar estórias engraçadas sobre como vocês brincavam na infância, como eram as festas em família, quais foram os “micos” que cada um pagou na frente de todos etc.

E quando você associa memórias á sensações? O frio do fim de tarde lembra bolo quentinho de chocolate; o suéter de tricô lembra as férias de inverno; o cheiro de chiclete lembra a sua sandália melissinha. Estes são apenas alguns exemplos que fazem parte da (minha) memória autobiográfica, responsável por organizar as nossas experiências pessoais. Este tipo de memória tem a ver com as estórias que contamos para nós mesmos sobre momentos que vivemos, e se divide em:

  • Memória autobiográfica episódica: relacionada a eventos e experiências que ocorreram conosco no passado. Ex: recordo de ter ficado muito nervosa no dia do meu casamento.

  • Memória autobiográfica semântica: é um tipo de memória que nos permite descrever fatos, conhecimentos ou ideias sobre o ambiente ao nosso redor. Considerada uma memória de longo prazo, permite o armazenamento de conceitos gerais sobre o mundo, como datas ou eventos históricos. Ex: lembro-me de que aprendi a andar de bicicleta aos 10 anos de idade.

No entanto, na medida em que envelhecemos, nossa memória autobiográfica vai “enfraquecendo”, ou seja, não lembramos com tanta precisão acerca de detalhes do passado. Isso pode ocorrer devido a perda gradual da memória, conhecida como transitoriedade.

Outro fator importante é que a memória autobiográfica não é 100% confiável, pois se trata de lembranças editadas, isto é, cada vez que lembramos de algo acrescentamos novos elementos, construindo assim uma nova narrativa acerca de eventos passados. Mesmo aquelas pessoas com “memória de elefante” que lembram tudo nos mínimos detalhes, podem formar falsas memórias (lembranças distorcidas que parecem reais e legítimas) acrescentando novas informações na mesma estória, cada vez que se lembra dela.

As memórias sobre a primeira infância também podem não ser tão fidedignas assim. De acordo com um estudo, desenvolvido por psicólogos do Reino Unido, foi pedido a 127 pessoas que lembrassem com precisão sobre memórias que elas tinham quando eram crianças. Constatou-se que as pessoas eram mais propensas a se lembrar com detalhes de memórias envolvendo “o quê”, “onde” e “quem”. Detalhes como: que tipos de pensamentos estavam tendo na época, que idade tinham, e como estava o clima no dia do evento, foram pouco lembrados. Com o estudo, os pesquisadores sugeriram que “o que podemos pensar como memórias detalhadas da infância são, na verdade, nossos cérebros 'preenchendo' inconscientemente detalhes específicos que não foram de fato lembrados".

A memória autobiográfica na infância

O desenvolvimento da memória autobiográfica ocorre a partir do momento em que a criança é capaz de simbolizar, isto é, reconhecer e dar nomes às coisas. Por este motivo é muito comum lembrarmos de eventos a partir dos 3 anos de idade, quando se adquire a linguagem simbólica. Os pais são grandes contribuidores da construção das memórias dos filhos. São eles que narram as primeiras estórias e curiosidades para os pequenos, por meio das conversas. Segundo esta publicação da Springer Nature, existem diferenças em como os pais narram o passado para os filhos e filhas. Identificou-se que as narrativas variam desde estórias mais elaboradas e detalhadas (para as meninas), até conversas curtas e repetitivas (para os meninos).

O tipo de pergunta também influencia na maneira da criança relembrar fatos antigos. Se a mãe faz perguntas abertas, ela se sente mais estimulada e coparticipativa ao relembrar situações e eventos que fazem parte da sua estória pessoal. É através da socialização entre pais e filhos, que as crianças desenvolvem habilidades que as preparam para criar suas próprias memórias. Com a colaboração dos pais, elas são mais capazes de relembrar eventos passados de maneira mais detalhada e vívida. Posto isto, pais que conversam de forma mais elaborada com os pequenos sobre experiências passadas, tendem a desenvolver filhos mais detalhistas em suas conversas.

A validação positiva é outra abordagem que contribui para despertar na criança o interesse pelas próprias memórias. Pesquisadoras do Dep. de Psicologia da Universidade Emory (Atlanta, Georgia), verificaram que quando as mães validam as narrativas da criança (sobre suas memórias), elas facilitam suas lembranças, fazendo com que se sintam mais animadas em prolongar a conversa sobre o passado. Esse efeito positivo foi observado principalmente em crianças bem novas, justamente por ser mais difícil para elas relembrarem episódios que já aconteceram.

O desenvolvimento da memória autobiográfica, além de ser crucial na construção da nossa identidade, também é de grande valia para o fortalecimento da memória. É o que indica um estudo de 2007, publicado pela Society for Research in Child Development/SRCD (Washington, DC) que demonstra uma ligação entre estilos mais elaborados de conversas entre pais e filhos, e as habilidades de memória das crianças. Para isso foi perguntado se as mães poderiam ser treinadas para terem conversas mais elaboradas com seus filhos, e quais seriam os efeitos (dessas conversas) na qualidade das narrativas infantis sobre o passado.

Na prática, um grupo de mães foi treinado para desenvolver conversas mais profundas sobre o que os seus filhos haviam aprendido em um acampamento, em contraste com outro grupo de mães sem treinamento. Foi detectado que os filhos de mães treinadas lembraram de características do evento de forma mais detalhada e concreta, em comparação às crianças de mães sem treinamento.

Isso sugere que a qualidade narrativa das crianças sobre o passado, tem a ver com o fornecimento de informações relatadas pelos pais (o que pode aumentar o volume de memórias autobiográficas infantis).

Fatores que influenciam na criação de memórias benéficas na infância

A cultura em que a criança está inserida, interfere de forma significativa na construção de suas memórias. Ainda de acordo com o relatório publicado pela SRCD, mães anglo-saxônicas conversam de forma mais elaborada com seus filhos do que as mães coreanas e chinesas. Isso reforça a importância do papel da fala no desenvolvimento de narrativas autobiográficas mais elaboradas na infância. Também explicaria o motivo pelo qual algumas crianças, após participar de um evento, lembram mais detalhes do que outras.

Assim, conforme temos visto, uma boa relação entre pais e filhos é premissa para o desenvolvimento de memórias autobiográficas ricas e saudáveis, que se estendem até a fase adulta. São elas que moldam o nosso “eu”, bem como nossos pensamentos, sentimentos e emoções.

Memórias autobiográficas dependem fortemente da emoção para se consolidar como experiência significativa na vida do sujeito. Sobre isso, um estudo publicado pela PLOS ONE, buscou identificar como o relacionamento entre pais e filhos afeta diretamente na formação de lembranças que os adultos tem sobre os pais. A avaliação de estímulo feita por neuroimagem detectou que as respostas dadas aos pais eram menos excitatórias com relação às obtidas quando voluntários se deparavam com imagens de mães.

Isso tem a ver com a construção de papeis de gênero que (por um bom tempo) delegava a mãe os cuidados da casa e dos filhos, e ao pai a provisão do lar e da família. Por outro lado, foi observado que os pais apresentavam um score maior do que as mães quando comparados a reminiscências de situações negativas na infância. Isso tem a ver com a forma em como os pais costumavam responder a situações de conflito envolvendo os filhos.

Diante desse cenário, percebemos o quanto as formas de relacionamento na infância são responsáveis por moldar o que registramos na memória. “Uma criança é capaz de falar sobre o passado, mesmo antes de se lembrar dele”, é o que ressalta um artigo divulgado pelo The Guardian, que destaca que são os pais que fornecem muitos dos detalhes do que acontece no dia a dia para a criança, até que ela seja capaz de formar suas próprias memórias autobiográficas. Portanto, as memórias das crianças são (em sua maioria) criadas em colaboração com os pais e/ou demais familiares.

Em conclusão, os pais podem ajudar seus filhos na construção de memórias autobiográficas mais benéficas e saudáveis:

  • Abrindo o caminho para o diálogo com perguntas abertas e conversas elaboradas sobre o que a criança quer saber;

  • Validando as memórias da criança de maneira positiva (considerando pensamentos, sentimentos e emoções envolvidas);

  • Diminuindo gradualmente a quantidade de informações dirigidas à criança, na medida em que suas habilidades narrativas evoluem;

  • Falando cedo com a criança (logo quando ela é capaz de simbolizar) sobre reminiscências do dia a dia. Conversar com os pequenos sobre o passado, além de ser crucial para o desenvolvimento de memórias autobiográficas, também corrobora para o fortalecimento das habilidades de memória, linguagem, comunicação e regulação emocional.

E agora, chega de papo, e bora falar sobre o passado (quem tem uma boa estória para contar para os pequeninos? Direto do “baú da memória”) ...