A história de Galileu Galilei é frequentemente apresentada como a luta dramática de um herói da ciência contra a opressão religiosa, uma narrativa que simboliza o conflito eterno entre razão e fé. Desde as aulas de ciências até os filmes populares, somos levados a crer que Galileu foi cruelmente perseguido pela Igreja Católica por ousar desafiar a visão geocêntrica do universo. No entanto, essa representação simplista não captura a complexidade da situação histórica e os múltiplos fatores que influenciaram o conflito.

Galileu não foi meramente uma vítima de suas ideias científicas; ele era também um habilidoso estrategista que navegava pelos tumultuosos mares da política e da religião de sua época. Para compreender verdadeiramente o caso de Galileu, é essencial desvendar as nuances desse episódio fascinante da história, onde a ciência, a fé, a personalidade e a política se entrelaçam de maneiras inesperadas e reveladoras.

Em 1543, Nicolau Copérnico publica o seu mais importante trabalho, o livro De revolutionibus orbium coelestium (Das revoluções das esferas celestes). Neste livro, Copérnico descreve o seu modelo heliocêntrico, em que a Terra orbita em torno do Sol, contrariando os modelos Ptolomaico e Aristotélico, que consideravam a Terra como o centro do universo, com o Sol e os demais planetas orbitando em seu entorno.

O livro de Copérnico foi muito bem recebido pelas autoridades da Igreja Católica, entre elas os cardeais Nicolau von Schonberg, que o incentivou a publicar sua teoria, e Reticus, que levou o trabalho de Copérnico para impressão, além do próprio papa Clemente VII. Ou seja, ao contrário do que se prega usualmente, a Igreja mostrou-se favorável ao modelo heliocêntrico de Copérnico. No entanto, foi a defesa do copernicanismo que levou Galileu a ser perseguido pela mesma Igreja que antes fora tão benevolente com a ideia revolucionária trazida pelo heliocentrismo. O que teria levado a essa mudança de postura? Para entendermos, precisamos analisar o contexto em que surge a controvérsia.

Em 1613, a grã-duquesa Cristina de Lorena, uma mulher devota, questionou ao amigo de Galileu, o monge beneditino Benedetto Castelli, sobre as descobertas que Galileu havia feito por meio do uso de seu telescópio e o seu apoio à ideia de Copérnico, de que a Terra, e não o Sol, se movia. Na visão da duquesa, isso parecia contrário a certos versículos bíblicos, como Eclesiastes 1:5, que diz: “O sol nasce, e o sol se põe; depois volta depressa para o lugar onde nasce novamente.”

Castelli, de forma polida, porém firme, defendeu a ideia de uma Terra em movimento. Em uma carta escrita para Galileu em 14 de dezembro de 1613, Castelli descreveu a conversa com a duquesa, o que levou Galileu a escrever uma carta em resposta à Cristina. Nesta carta, Galileu não usou argumentos científicos, mas concentrou-se no uso do livro sagrado do cristianismo, a Bíblia.

O sábio italiano reconhecia que havia passagens nas Sagradas Escrituras que pareciam ir de encontro com a ideia presente no modelo heliocêntrico. No entanto, argumentou que certas passagens bíblicas não poderiam ser interpretadas de forma literal, uma vez que não era objetivo do autor das Escrituras Sagradas produzir um compêndio de filosofia natural, mas, sim, fornecer orientações que levassem os homens à salvação de suas almas.

Vale ressaltar que, primeiro, Galileu era um homem que cria profundamente na Bíblia como a palavra revelada de Deus. Em segundo lugar, ele embasava seu argumento citando Santo Agostinho, que afirmava que o Espírito Santo, ao inspirar os autores humanos da Sagrada Escritura, “não pretendia ensinar aos homens a natureza essencial das coisas do universo visível, coisa em nenhum caminho proveitosa para a salvação.” Essa forma de pensar foi seguida por São Tomás de Aquino, outro influente pensador da Igreja Católica. Ou seja, entre os principais teólogos da Igreja imperava um espírito de tolerância quanto ao conhecimento científico, levando a uma interpretação flexível das passagens bíblicas.

Esse padrão de exegese era bem conhecido pelos teólogos dos tempos de Galileu. O próprio cardeal Belarmino, o mais influente teólogo da época, escreveu: “Se houvesse uma demonstração verdadeira de que... a Terra circunda o Sol, então teríamos que proceder com muito cuidado ao explicar as Escrituras que parecem contrárias, e dizer antes que não as entendemos do que que são demonstradamente falsas.”

Todavia, houve fatores que pesaram na decisão de convocar Galileu perante a Inquisição. Primeiro, o Concílio de Trento (1545-1563) havia tornado a interpretação das Escrituras mais rígida, visando evitar inovações radicais quanto à doutrina. Ficou decidido que “sobre questões de fé e moral”, as interpretações não deveriam se afastar das consensuais dos Padres da Igreja Primitiva. Na visão de Belarmino, embora questões astronômicas não fossem, em si mesmas, uma questão de fé, elas diziam respeito à substância da fé “quanto ao seu tema”, ou seja, se o autor das Escrituras cita certo fato observável, a crença na veracidade do que está escrito é uma questão de fé.

O segundo fator diz respeito à natureza da nova ciência que surgia com Galileu. Diferente da matemática, em que demonstrações formais atestavam a veracidade de um teorema, a nova ciência se pautava por inferências extraídas de observações empíricas, sem como fornecer uma demonstração incontestável da veracidade de uma teoria. Terceiro, as novas ideias sobre a autonomia da ciência, embora defendidas de forma brilhante por Galileu, não foram bem aceitas pelas autoridades eclesiásticas, uma vez que Galileu não tinha formação ou competência para argumentar sobre como interpretar as Escrituras.

Outro fator que mostra que a perseguição sofrida por Galileu não foi devido às suas descobertas científicas vem do fato de que ele nunca refutou o Aristotelismo, pois não conseguiu fornecer uma resposta satisfatória para o principal argumento de Aristóteles: a paralaxe que deveria ser observada nas posições das estrelas à medida que a Terra se movia em órbita em torno do Sol.

O evento envolvendo Galileu e a Inquisição nos revela uma série de verdades sobre fatos históricos. Ele não foi perseguido pela sua ciência, mas sim por defender uma flexibilidade com respeito às interpretações das Escrituras e a autonomia da ciência para interpretar os fenômenos naturais. A lição que aprendemos nos ajuda a compreender fenômenos sociais atuais, em que autoridades, incapazes de lidar com as mídias sociais, discutem o controle dessas redes, apelando para conceitos vagos, como fake news.

Portanto, embora reconheça a necessidade de criar mecanismos mais eficientes para punir a disseminação de notícias falsas, creio que censurar quem pensa diferente tende a ser tão ineficiente quanto foi nos tempos de Galileu. A circulação livre de ideias é essencial para a produção de novos conhecimentos e para o progresso científico, filosófico e social.