Como nos relacionamos com a produção e circulação de nossos dados pessoais? Atualmente, produzimos uma quantidade gigantesca de dados, aceitamos termos de serviço sem pleno conhecimento de como nossos dados serão tratados ou a finalidade deste uso e nem sempre temos consciência dos nossos direitos com relação aos dados que geramos, cedemos e acessamos na internet. Esta geração de dados viabiliza os avanços de tecnologias como a Inteligência artificial e a estrutura atual da internet favorece o controle na circulação de dados, que está nas mãos de algumas poucas corporações.

Segundo Rafael Zanatta1, advogado e ativista pelos direitos digitais, podemos dividir os dados que circulam na internet em três categorias: cedidos, tomados e inferidos. Os dados cedidos são aqueles fornecidos quando aceitamos os termos de uso. Os dados tomados são os metadados captados a partir dos celulares: hora e localização, os cliques e seleções, o tempo de permanência em uma foto ou em uma página, a frequência de determinadas rotinas digitais etc. Os dados inferidos são o cruzamento de dados cedidos e tomados, que permitem inferências e definição de perfis psicológicos, de consumo, destinados aos mais diversos fins. Essas inferências constroem a chamada identidade digital, que vai determinar o que se recebe como propaganda e conteúdo em geral na navegação em buscadores ou qualquer plataforma que tenha espaço para propaganda online. Essa é a estrutura base que define o que acessamos e que representa quem somos para as máquinas.

Uma forma de nominar este fenômeno é a dataficação2. Ela é definida como o processo de transformar vários aspectos da vida cotidiana em dados mensuráveis e passíveis de serem armazenados e analisados. Envolve a coleta sistemática de informações e a transformação desses dados em formato digital para posterior análise e geração de conhecimento. A dataficação permite que uma ampla gama de atividades humanas e fenômenos sejam traduzidos em dados digitais. Isso inclui desde transações comerciais e registros de navegação na internet até informações biométricas, dados de sensores e registros de interações sociais online.

Em reflexão sobre o letramento crítico de dados, o professor Marcelo Buzato3 traz uma proposta de argumentação e engajamento "através de ou sobre dados" de forma a permitir que se possam fazer mudanças nas políticas públicas e na sociedade através do acesso a dados abertos, da apropriação de técnicas de análise e visualização de dados. O professor menciona casos de erros graves de interpretação de dados e afirma que o letramento crítico de dados se refere aos cidadãos engajados e organizados aproveitando a dataficação para "mudar as coisas" por meio do acesso e até o gerenciamento e a venda de seus próprios dados. Dessa forma, seria possível uma relação mais consciente com os rastros na rede.

Já Cathy O’Neil, em seu livro Algoritmos de Destruição Matemática de 2020, conta sobre um erro grave na leitura de dados educacionais do governo norte-americano na década de 90, que atribuiu a piora do rendimento dos estudantes ao desempenho dos professores, o que culminou na criação do programa chamado “Nação em Risco”. Depois de anos de políticas públicas desenhadas a partir da leitura destes dados, percebeu-se um erro na análise. Uma leitura não crítica de dados pode resultar em consequências graves para indivíduos ou populações inteiras.

O crítico de arte e pesquisador Jonathan Crary4 afirma que a internet nunca servirá à emancipação. Ele analisa o impacto da internet e das mídias digitais na sociedade contemporânea e argumenta que o "complexo internético" está contribuindo para a dissolução da sociedade, sendo inseparável dos processos de acumulação de capital global. Crary reconhece a capacidade das mídias digitais de mobilizar cidadãos em situações pontuais, mas argumenta que as mudanças estruturais essenciais para a sobrevivência do planeta não surgirão da internet. Ele desafia a ideia de que reformas tecnológicas podem resolver os problemas fundamentais e enfatiza a necessidade de ampliar nossa imaginação social, política e inter-humana. O autor traz também uma crítica importante referente ao impacto do uso da internet na sensibilidade humana. A constante exposição às telas e ao mundo digital pode deteriorar a nossa experiência sensorial, eliminando a capacidade de sonhar acordado e experimentar a vida fora das telas.

Para além de visões bastante turvas com relação ao futuro da internet, alguns autores apontam para possibilidades interessantes considerando a nossa relação com os dados pessoais. Uma delas é de Pierre Levy5, que, apesar de reconhecer o controle de fluxo de informação realizado pelas grandes corporações, defende que as novas tecnologias, usadas de forma significativa, podem aumentar a inteligência humana coletiva. Ele afirma que todos os seres vivos possuem o que chama de inteligência coletiva, no entanto, os seres humanos possuem uma inteligência pessoal reflexiva, o que aumenta a capacidade da inteligência coletiva global. Sendo assim, é proposta uma linguagem chamada IEML (Information Economy MetaLanguage), que se traduz em uma ferramenta de expansão da inteligência coletiva e que trabalha com o oceano de dados da memória digital comum à humanidade.

Como mais uma referência na pesquisa sobre a circulação de dados individuais, é importante mencionar Jaron Lanier6, que discute sobre a dignidade dos dados pessoais e afirma que esses dados devem ser pagos pelas Big Techs e que devemos ter direitos morais por cada dado gerado. Ele propõe, então, o que chama de MID, Mediator of individual data, ou Mediador de dados individuais, uma organização sindical como uma estrutura para abordar as principais questões em torno de dados gerados pelo usuário, como propriedade, monetização e reparações. Tal mediador e a consequente regulamentação poderiam preservar, então, a humanidade na Internet.

A Unesco publicou recentemente um relatório sobre a importância da regulamentação da IA na educação, o Guidance for Generative AI in education and research7 e traz diretrizes como: promover a inclusão, a equidade, a diversidade linguística e cultural; proteger a agência humana; desenvolver competências de IA junto aos estudantes; capacitar professores para fazerem uso adequado da IA generativa; promover opiniões plurais e expressões plurais de ideias; testar modelos de aplicação localmente relevantes e construir uma base de evidências cumulativas.

A inteligência humana é muito mais sofisticada do que a inteligência de máquina, mas é fundamental termos avanços na regulamentação, além de consultas públicas, que permitam a participação da população, maior transparência no desenvolvimento, além de conhecimento sobre os limites e potencialidades da tecnologia. O que importa não é a tecnologia em si mesma, mas o sistema social ou econômico no qual ela se insere, já dizia Langdon Winner8. Para além dos instrumentos técnicos, é fundamental perceber as circunstâncias sociais de seu desenvolvimento, desdobramento e utilização e, por fim, é importante reconhecer as formas pelas quais as tecnologias são moldadas pelas forças econômicas e sociais vigentes. Talvez, nessa busca, possamos interagir de forma mais sustentável e ética com o digital e com nossos dados.

Notas

1 Zanatta, Rafael. A repolitização do uso de dados depois de 15 anos de tecnotopia. [Entrevista concedida a] Ricardo Machado. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 17 out. 2019.
2 Cukier, Kenneth; Mayer-Schonberger, Viktor. Big Data: A Revolução dos Dados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
3 Buzato, Marcelo El Khouri. Critical Data Literacies: going beyond words to challenge the illusion of a literal world. In: Takaki, N. H.; Monte Mor, W. (Eds.). Construções de sentido e letramento digital crítico na área de línguas e linguagem. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017. p. 119–142.
4 Crary, Jonathan. Terra Arrasada: Além da Era Digital, Rumo a um Mundo Pós-Capitalista. Tradução de Humberto do Amaral. 1ª ed. São Paulo: Ubu Editora, 2023. 192 p. (EXIT; vol. 14). ISBN: 978-8571260986.
5 Levy, Pierre. "A questão é: como usaremos as novas tecnologias de forma significativa para aumentar a inteligência humana coletiva?". [Entrevista concedida a] Sandra Álvaro. Fronteiras do Pensamento, Jul. / 2019.
6 Lanier, Jaron Gadget. Você não é um aplicativo. São Paulo: Saraiva, 2010.
7 Unesco. Guidance for generative AI in education and research. Paris: Unesco, 2023. ISBN 978-92-3-100612-8.
8 Winner, Langdon. “Do Artifacts Have Politics?” In: Winner, L. “The Whale and the Reactor – A Search for Limits in an Age of High Technology”. Chicago: The University of Chicago Press, 1986 p. 19-39.