Gargouillou, o prato-assinatura de Michel Bras (n. Gabriac, 1946) que nunca é o mesmo. Obra irrepetível, o mesmo que dizer mille-feuilles vegetal, porque ele é dotado de variações, como se de uma peça musical se tratasse. Gargouillou, um prato-composição que apenas repete: Bras, Bras, Bras. Gargouillou, um prato-paisagem que sonha a partir de um campo repleto de plantas e flores baloiçando ao vento, “quando a arquitetura das flores, dos caules, dos frutos, as esculturas dos ramos tocam o imaginário”.

Bras, que também é fotógrafo amador, descreveu assim o momento que terá vivenciado em 1978 aquando de uma das suas típicas caminhadas p’ los campos de Aubrac, e cujo nome de batismo (Gargouillou) alude a um ragoût de legumes da região de Auvergne que, em idos tempos fazia parte da dieta tradicional do agricultor ocittano auvernês, reconfortando-o nas gélidas noites de inverno.

É verdade que Bras sempre teve em consideração a questão do terroir, sendo desde logo visível na escolha do logótipo do restaurante Le Suquet, em cuja imagem figura um raminho de uma erva selvagem que nasce nas terras altas do planalto de Aubrac. Trata-se da erva-doce dos alpes (Meum athamanticum), apelidada pelos botanistas, e carinhosamente pela família de Bras, por “la cistre”, e que o semiólogo Jean-Marie Floch dedicou um capítulo inteiro no livro Identités visuelles, nomeadamente, “L’Eve et la cistre. L’emblème aromatique de la cuisine de Michel Bras”, numa das suas melhores análises em que explora com aguçada lucidez o universo semântico de Bras.

Para Bras, interpretar o terroir significa ir mais além, significa traduzir coisas. Coisas que, aparentemente, não estariam associadas a uma culinária concebida como prática artística. Aparte a questão dos “produtos do terroir”, Bras está interessado na forma como as nuvens se movem no céu de Aubrac, nas nuances de luz, na lua, nas impressões em geral. Este lugar que Bras ocupa, o lugar de traduzir o menos óbvio, faz com que o identifiquemos como aquele que desvela, que faz ver o que está-aí, como um fenomenólogo (culinário).

1980 - Flores, folhas e ervas como elementos principais, ainda que hoje não tão raro. A sua composição varia consoante aquilo que há disponível no mercado e na horta, ou mesmo no que floresce nos campos que rodeiam Aubrac, podendo variar entre cada menu, ou mesmo entre o almoço e o jantar.

Gargouillou, um prato inconfundível, pleno de virtudes técnicas, cuja filosofia apela de forma irrepreensível ao conceito japonês de kaiseki, o qual prima pela simplicidade, elegância, e onde a escolha do Chef recai sobre ingredientes sazonais. Gargouillou, um prato simbólico que alberga o carácter idiossincrático de Bras, sua identidade e filosofia,la poèsie, la vie même, o mundo interior de Bras.

De acordo com Michel Bras, o Gargouillou é uma associação livre de diferentes formas, cores e sabores. Na verdade, estamos diante de um prato mítico, em que os opostos encontram uma forma de coexistir. Assim temos frio e quente, húmido e seco, as constantes dos opostos como descrito por Lévi Strauss. O Gargouillou é um sistema aberto, uma combinação de 15, 60 ou 80 elementos, onde tem lugar os niac’s, temperos especiais que servem para acentuar a personalidade de cada Gargouillou. Em suma, os niac´s são pequenos apontamentos que, atualmente, estão divididos em categorias: condimentos, óleos, bebidas, pastas e vinagres. Têm o poder de conferir atributos provocativos, excitantes, deliciosos, ao paladar. Possuem o dom de estimular os sentidos.

Bras define ainda os niac’ s segundo três aspetos. O primeiro é do tipo plástico e composicional, em que se contextualizam estruturas, toques e traços, onde se fazem escolhas composicionais no plano do prato. O segundo aspeto é do tipo narrativo e enunciativo, em que a relação autor/consumidor decorre de uma estrutura de manipulação que visa despertar sensações ou questionar através de provocações, que nada mais são do que estimulações do tipo sensório. O terceiro aspeto é do tipo sensível, afetivo, e caracteriza a reação em si, daquele que recebe, essencialmente a partir da impressão de espanto ou pela vigência dessa coisa que é a alegria, dessa alegria pura que é o receber o alimento.

Neste prato icónico, Bras oferece-nos o mundo através da sua “aparente” simplicidade, num misto de profundo equilíbrio e comunhão com a natureza. Feto, amaranto, borragem branca, alho-de-espanha, trevo, talo de couve-flor, ervilhas, cerefólio-tuberoso, agrião, Phyteuma sp., abóbora branca, cebolinha, endívia, morugem, rabanete rosa, salsifis, tomate, entre outros vegetais, rebentos jovens, folhas, sementes ou raízes, todo esse conjunto rematado por uma simples gemada ou sucos de presunto curado cozido num caldo preparatório, só para dar alguns exemplos.

Gargouillou, um prato-maior com mais de 40 anos, influência primordial da cozinha contemporânea. Gargouillou, o prato-jardim que é uma salada. Moderna, sublime. Gargouillou, um prato-inspiração, assimilado e interpretado por vários Chefs ao longo da história recente da culinária. Obrigatório citar: a) Into the Vegetable Garden, David Kinch, Manresa (3 estrelas Michelin); b) From the Garden, Paul Liebrandt, Corton (3 estrelas Michelin); c) Vegetable field, René Redzepi, Noma (3 estrelas Michelin); d) Plato de verduras, Andoni Luis Aduriz, Mugaritz (3 estrelas Michelin); e) Menestra deconstruida, Ferran Adrià, elBulli (3 estrelas Michelin); f) Salad explosions, Simon Rogan, L’Enclume (3 estrelas Michelin), todos eles declinações explícitas do Gargouillou.

Gargouillou, mais que um prato, um prato-conceito, um signo culinário, dinâmico e sazonal, cujo estilo visual nos transporta para La Primavera de Sandro Botticelli, ou cuja conceptualidade nos remete a Le Quattro Stagioni, de Antonio Lucio Vivaldi. Gargouillou, um prato-pintura, uma referência espaço-temporal, cujo naturalismo culinário se condensa nas estações, na passagem do tempo, nesse exercício misterioso que nos salva sempre.

Referências

Basque Culinary Center (2023). 40 años del Gargouillou: el plato de Michel Bras que nunca es el mismo. In Gastronomia 360º.
Bröcker, Felix (2023). My Eye is a Mouth: Spectacular Food for the Eye. In Food – Media – Senses.
Fontanille, Jacques (2005). À déguster des yeux. Notes sémiotiques sur la «mise en assiette». À propos de la cuisine de Michel Bras. In Visible.
Mangano, Dario (2016). Food design chez Bras. In Semiotica .