Quando as nações se integram numa estrutura mais vasta com uma arquitetura e lógica como a da Comunidade Europeia, as questões identitárias ressurgem como equações em busca de novas respostas.

Tomarei como exemplo e case study o caso da identidade nacional portuguesa.

Aceitemos que Portugal se erigiu através de e sobre uma comunidade linguística, cultural e simbólica que lhe conforma e informa as tradições, os hábitos e a "comunicação silenciosa" (1), em particular, na sua territorialidade original mais estável, na Europa (2).

A tendencial coincidência entre nação, povo, estado (3) e território político numa instância designada Portugal parece atenuar a problematicidade constitutiva (a perplexidade face às razões, factores fundacionais, a imponderabilidade da sua viabilidade e sobrevivência, etc.), afinal, reconhecida e ultrapassada pela afirmação de uma "ânsia" de "ser livre" (4) ou pela auto-mitificação como povo eleito com missão.

A cedência do nome próprio (Portugal) ao adjectivo (República Portuguesa) nos documentos fundamentais (Constituição, etc.) sinaliza, no entanto, algum problema identitário. Curiosamente, Portugal é masculino e essa virilidade simbólica é capital que se dissolve na nova designação com o adjectivo subordinado ao estatuto de regime: esse masculino marcou a sua independência, quer na fundação, quer na refundação (1640), em contraste com a Europa e os outros países europeus, virilizando para a História os Reis que as protagonizaram.

O feminino começa a invadir o discurso oficial a partir deles e dos seus juramentos (5), embebendo a terra cuja matricialidade acaba por evidenciar (tradições e fé das diferentes classes sociais confluem assim). Nos mitos identitários portugueses, agigantam-se quase sempre varões valentes (de Ulisses ou Tubal a Viriato ou de Nuno Álvares Pereira a Vasco da Gama), figuras tingidas pelo telúrico (contrastando com a nossa história marítima) e pela solaridade que chega a contaminar as figuras femininas (como a Joaninha garrettiana), enquanto nos mitos identitários de outros países europeus com os quais nos relacionámos, a importância do feminino, da água e da lunaridade (marcantes localizadamente em Portugal, como em Sintra) talvez seja mais notória (6), mesmo considerando as sagas arturiana (Inglaterra) e carolíngia (França), ambas sopradas por lendas de magia (feminina, apesar de Merlin).

Perscrutemos a sombra à luz sociológica.

Até recentemente, a transmissão/reprodução cultural que mantinha a identidade apesar e através das metamorfoses da sua história era garantida, principalmente, pela família, pela escola, pela igreja, pela instituição laboral e pelo discurso institucional (histórico, político, pedagógico, etc.). Em todos os casos, o singular era imperialista (não exclusivo): tendia a dominar o panorama e conferia estabilidade ao status quo. Actualmente, todas essas estruturas estão instabilizadas, complexificadas pelo pluralismo, pela multiplicidade e pela heterogeneidade, até de papéis, provocando flutuação ao mosaico social, promovendo a alteridade na identidade, ou repercutindo-se nas diversas clivagens das identidades. Os elos da velha cadeia estão a quebrar-se.

As tradicionais fronteiras simbólicas tendem a ser alienadas: a ocidentalidade e a natureza europeia excedem-nos, as alfândegas dissolveram-se na CEE, a moeda é dominada por fora e não tem a sua referência em ouro nacional, a língua serve oficialmente diversos estados-nações, o ensino está subordinado às directrizes de Bolonha, os mass media e certas estruturas básicas na vida social são dominadas por instâncias estrangeiras ou estão em vias disso, a legislação nacional está subordinada à europeia, o princípio que impera é o da mobilidade de pessoas e bens.

Família. Multiplicam-se e diversificam-se os núcleos do simultâneo (quando se formam) e perdem-se os nexos das continuidades: os relacionamentos "sem compromisso" (fugazes, sem pacto, abertos), em movimento caótico de acasos circunstanciais; o "mercado livre" das famílias (casamentos, co-habitações, relações em dupla habitação, relações paralelas, etc.) e a diversa modelização destas (no plano dos géneros, das logísticas, dos pactos, etc.) adiciona núcleos familiares, lateraliza-os, metonimiza-os funcionalmente; as relações entre as gerações está a quebrar-se pela sua ghettização (a primeira, nos infantários-escolas-ATL; a segunda, no trabalho; a terceira, nos lares), a perder os elos, a comunicação, a via do legado familiar (em última instância e em grande parte, comunitário, tradicional).

Escola. Lugar e tempo dominante na vida da primeira geração. O medo de existir (7) reflecte-se no modo como se evita a autoridade hierárquica e um sistema hierárquico de valores, esbatendo tudo isso com a multiplicação e diluição de chefias e de sistemas ético-morais em benefício da evidenciação de matérias compartimentadas cujas relações imergem no policentrismo docente. A agressividade gera, inclusivamente, o bullying, já quase encarado com naturalidade pela frequência e generalização a todas as faixas etárias académicas.

A aposentação em massa dos velhos mestres cria um vazio geracional de cultura humanística e de perspectiva científica, mas também de visão institucional e de "rota" programática susceptível de evidenciar linhas dominantes de pensamento, funcionamento e política pedagógica. Progressivamente, o ensino, prensado entre a massificação, as exigências de financiamento e de empregabilidade e as directivas internacionais com motivação política e de macro-economia, deixa de promover uma cultura humanística e crítica para conformar _as mentes às _constrições mais funcionais no sistema: a formação cede à deformação, a abertura de horizontes ao seu fechamento por uma visão pragmática, funcional e materialista.

A marginalização de matérias que promovem o espírito crítico (caso da Literatura), o divórcio entre as disciplinas (a dimensão de linguagem e formalização da língua e da matemática não é sequer insinuada na Filosofia, que caracteriza o seu próprio conhecimento de modo que não deixa sequer pressentir a relação entre o pensamento, a lógica e a retórica) e a falta de complementaridade entre os seus programas, assim como o ensino por blocos pouco relacionados, no conjunto, fazem os alunos avaliar o que têm de estudar distinguindo pragmaticamente entre "o que tem de ser retido para o teste" e "o que é para esquecer".

Igreja. A separação de poderes, com a consequente laicização da sociedade, e o pluralismo das confissões religiosas, cada uma delas com clivagens internas consagradas nas suas estruturações sistémicas alimentam a diversidade de pensamentos que promove desde o ecumenismo até à desorientação de muitos.

Trabalho. A fidelização institucional e o vínculo para a vida cederam definitivamente à precarização do emprego, à mudança sistemática e inesperada, à mobilidade internacional. O tempo de vida activa reduz-se na razão inversa do seu prazo legal: cada vez mais, a faixa etária dos 25 aos 40 anos parece ter a quase exclusividade da empregabilidade, em contraste com a lei, que consagra uma idade mais avançada para o direito à aposentação, e em contraste com grandes manchas de desemprego (que emolduram, mas que também atravessam essa faixa etária de maior incidência de emprego). A mobilidade e a falta das gerações de faixas etárias superiores impedem a definição, a fixação e a transmissão de uma "cultura" institucional (de empresa, de instituição pública, de academia, de centro de investigação): perdem-se essas identidades de referência e os referenciais identitários, deixa de haver "passagem do testemunho" e "despe-se a camisola".

Vida activa. Os quinze anos de vida activa laboral coincidem com o máximo esforço e investimento na esperança do seu prolongamento, com consequente desinvestimento na família (primeira e terceira gerações) e na geografia dos afectos. Com isso, insularizam o indivíduo e quebram-lhe a cartografia identitária estruturante da sua sanidade psicológica e mental, com efeito multiplicador, exponencial, na comunidade que o integra. E isso chega a começar _antes _da entrada no ensino superior, para lá entrar, para conquistarem a entrada na via escolhida.

Notas

(1) Cf. Edward T. Hall, The Silent Language, New York, Anchor Books, 1959; Id., The Hidden Dimension, New York, Anchor Books, 1966.
(2) Cf. Benedict Anderson,_ Comunidades Imaginadas. Reflexões Sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo, Lisboa, Edições 70, 2005.
(3) Na verdade, nem os conceitos não se identificam nem as realidades coincidem. Mas essa é matéria que trato noutros locais.
(4) "Portugal tem um único fim e objecto [...] é o de SER LIVRE" (cf. _Portugal na Balança da Europa pelo V. D'Almeida-Garrett
, 2.ª edição, Porto, em Casa da Viuva Moré, Praça de D. Pedro, 1867, p. 287).
(5) "A Imaculada Conceição e a legitimação da identidade nacional" (cf. Annabela Rita, Focais Literárias, Lisboa, Esfera do Caos, 2012, pp. 155-174).
(6) Europa foi objecto de desejo e rapto amoroso pelo rei dos Deuses; França teve o seu Meroveus, filho de uma princesa com uma criatura marinha; também em França, em Inglaterra e no Luxemburgo, além de outros países europeus, Melusina, espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas, invade de magia e mistério as origens dos castelos, das famílias, dos países.
(7) Cf. José Gil, Portugal, Hoje: O Medo de Existir, Lisboa, Relógio d’Água, 2004.

(-segue)

Segunda parte: http://wsimag.com/pt/culture/8336-identidades-nacionais-o-futuro-incerto