Azar não é o oposto de sorte. Pode ser no dicionário, mas não na forma como, geralmente, vemos os acontecimentos da vida. Teoricamente ambos são fortuitos, independentes da nossa vontade ou dos nossos atos. Mas não é assim que funciona na nossa cabeça.

O futebol serve bem para exemplificar. Nosso time nunca tem sorte, mas muitas vezes tem azar. Se ganhamos o jogo, foi porque o time jogou bem, mesmo que seja aquele gol no último minuto da prorrogação. Se perdemos, foi azar. Nosso time fez um gol, foi uma obra de arte. Sofreu um gol, que azar!

E não só nos esportes. No mundo do trabalho é comum o uso do mesmo raciocínio. Fui promovido, que competência; fui demitido, mas que azar.

Até nas relações amorosas funciona mais ou menos assim. Um casamento feliz, é porque são pessoas maravilhosas, nasceram um para o outro. Houve separação, fulano deu um azar...

Fico achando que no fundo, nós acreditamos mais no azar do que na sorte. O azar nos justifica, a sorte nos desvaloriza. É possível que usemos os conceitos conforme a nossa conveniência: abrigamos as nossas falhas no azar e convertemos a nossa sorte em méritos próprios.

Como sorte ou azar não tem explicação, abre-se um campo amplo para as superstições. Para atrair a sorte nada como pé de coelho, trevo de 4 folhas, figa e bater três vezes na madeira. Para o azar o menu também é rico, incluindo quebrar espelho, passar embaixo de escada, gato preto e abrir guarda-chuva em casa.

Tem também o controverso número 13. O inesquecível Zagallo, jogador de futebol e técnico da seleção brasileira, encontrava neste número a razão para uma grande sorte. Mas e a sexta-feira treze? Muitas companhias aéreas no mundo aboliram a fila 13 nos aviões. E a maioria dos prédios em Manhattan pulam a numeração do décimo segundo para o décimo quarto andar.

Dito isso, passo a contar um caso.

Trabalhei numa empresa pública por muitos anos. O presidente deste tipo de empresa é substituído ao sabor da conjuntura política e, portanto, tem uma dinâmica bem diferente de empresas privadas. Cada mudança de presidente, muito frequente, obrigava todos nós a uma nova adaptação à personalidade do recém-chegado e às pessoas trazidas por ele para compor seu staff mais próximo.

Numa destas ocasiões, assumiu a presidência um senhor de uns 60 anos, muito simpático, extremamente gentil e educado. Porém, no seu staff surgiu um verdadeiro mistério. Na antessala do presidente havia duas secretárias, um office boy e, num canto, uma funcionária enigmática. Era uma senhora de uns 50 anos, de óculos de aros pretos grossos, cabelos presos num coque antiquado, colares e brincos bem discretos e vestida com sobriedade. Qualquer roupa nela parecia ter a cor cinza.

Ouvi a voz dela uma única vez, quando fomos apresentados:

— Esta é a Dona Lurdes.
— Muito prazer — disse ela, séria e com a mão gelada.

Surpreendeu-me o fato de a mesma não ocupar uma mesa, mas apenas uma cadeira com braços. Na hora achei que era transitório, enquanto não ia para outro local. Mas o tempo passava e ela continuava ali, sentada, gelada e calada.

Em pouco tempo, passou a ser o tema preferido dos comentários nos corredores e banheiros da empresa, nem todos generosos:

—- Não faz nada o dia todo, nem mesa tem.
— Deve ter alguma função, que o presidente não revela.
— Cabide de emprego.
— Espiã.

Por longos meses a situação permaneceu indecifrável e as especulações só aumentavam:

— É amante do presidente!

Até que tivemos um acidente grave na empresa e fomos chamados à sala do presidente para uma reunião urgente. Eu fui o primeiro, mas aos poucos outros funcionários iam chegando, pois o assunto envolvia várias áreas. A sala tinha uma mesa de reunião enorme: o presidente na cabeceira e os lugares sendo preenchidos ao longo da mesa, por ordem de chegada. Assunto grave, envolvendo vítimas e prejuízos. Todos muito concentrados e tensos.

Notei que a partir de um certo momento, com a chegada de cada participante, o presidente percorria a mesa com o dedo indicador meio encolhido, balançando e apontando para cada um. Em seguida, retornava ao assunto.

Aquele gesto intrigante e fora de contexto preocupou a todos. O dedo não estava em riste, acusatório, mas causava desconforto. Será que está cogitando demissões? Isso fazia aumentar ainda mais a tensão.

Finalmente, chegou a presença mais aguardada: o nosso diretor, que possuía a responsabilidade hierárquica e a quem cabia relacionar-se com a autoridade máxima. Desocupamos o lugar mais próximo da cabeceira para ele, que ainda se acomodava, quando o presidente repetiu o percurso da mesa, bambeando o indicador em nossa direção. Ao concluir, levantou de supetão e pegou o telefone à sua frente:

— Peça para a Dona Lurdes entrar.
Foi um silêncio de enterro.

Cada um pensava uma coisa:

— Então era isso! Ela é especialista em crises.
— O diretor vai ser demitido e ela vai assumir.
— Eu sabia: é o contato com a polícia.
— Vai fazer a relação dos demitidos.

Faltou naquela hora um rufar de tambores até a porta se abrir.

Dona Lurdes entrou. O presidente aguardava de pé. Os tambores agora deveriam tocar uma marcha militar: ela veio com cara de esfinge, passo firme, batendo o salto no carpete e séria como seus óculos. Balançou a cabeça para frente em um cumprimento a todos e sentou-se isolada na outra cabeceira da enorme mesa.

Ninguém conseguia falar nada. Era a expectativa de revelação do mistério.

O presidente precisava explicar-se. Ainda de pé, proclamou:

— Os senhores me desculpem, mas eu não me sento à mesa com 13 pessoas. Nem eu, nem ninguém da minha família. Claro que eu não cometeria a indelicadeza de pedir a um dos senhores para sair. Obrigado, Dona Lurdes. Vamos prosseguir.

A reunião continuou, mas havia um certo constrangimento geral.

A performance de Dona Lurdes atendeu todas as expectativas: permaneceu sentada, gelada e calada.

Fiquei pensando que nome seria correto para aquele cargo.

Acho que foi a primeira vez que uma superstição gerou um emprego. Emprego público.