A cidade cresce. Todos nós crescemos. Mudam os tamanhos e os olhares. Os sentimentos também não são os mesmos. Nada permanece. As casas viram edifícios, as ruas vão parar em outros cantos. Praças e árvores são peças da arquitetura dos espaços. Quando somos crianças vemos o formigueiro de gente a transitar. Agarrados às mãos protetoras dos pais, passeamos atentos ao mundo e respiramos a realidade que somos.

Ao colecionar estações com olhar mais autêntico, registramos as brisas que levam as coisas do lugar, as cores que desbotam e voltam a sorrir, as pedras imóveis que andam pelos ares. Observamos a vida com os olhos de Camões,

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Os tempos mudaram e João sabia.

Continuamente vemos as novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

Ele tinha a vontade de agarrar o tempo. Contar, saber, compartilhar, eternizar. E para isso existe livro. Nele cabe tudo. A visão de quem escreve, o olho que captou a imagem, o coração que bordou as pálidas páginas e impregnou-as de sonho. Cabe o cotidiano que está vivo e o que está morto.

João colocou no livro o inexorável caminho daquele lugar. E o seu. Fruto de lembranças e pesquisas, sem poluir o original embrião do seu mundo. Nascera e crescera naquele local e sabia muito bem tudo o que acontecera na sua permanência. Procurou saber da vida anterior à sua concretude. A oralidade ainda é preciosa para garimpar raridades. Muito ouro, muito metal.

A avó também nascera e crescera ali. E conhecia a comadre mais velha do bairro. João adorava encontrá-las e ficar conversando, ouvindo e registrando como podia. Escrevia, gravava, aceitava fotografias e documentos raros. Colecionava as histórias e os caminhos que foram percorridos antes, muito antes de existir neste mundo.

Como podemos percorrer os passos de Pessoa em Lisboa, desde onde nasceu, em frente ao Teatro de São Carlos, sua morada no Largo do Carmo, os cafés e livrarias que frequentava e até o Elétrico 28 que tomava para fazer a rota Campo de Ourique ao Chiado, João contemplou os seus passos no bairro. Só não narrou, como o poeta revisitado, sua casa como museu — a última em que vivera — e o mosteiro onde foi sepultado, afinal de contas João respira neste planeta e esta trilha ainda está por vir.

Bom observador e conhecedor de todos os cantos, detalhou cada árvore e pedaço de calçada. E pensou que os lugares são marcados por memórias e presentes. O presente ganha a prenda da memória e se enaltece como a oliveira que veio da aldeia de Saramago e recebeu suas cinzas em frente à Casa dos Bicos, na Alfama.

João não deixou escapar nem a poesia e nem os ruídos do lugar que o vira crescer e se tornar homem sensível e ativista pelo bem comum. Como Cesário Verde, cantou os conflitos d’Um bairro moderno, inevitável nos crescimentos e quedas que a poeira das torres ao chão provoca.

No livro cabe os passos e os caminhos, as paisagens e personagens que constroem e vivem o cenário. O bairro é o mundo. É um universo dentro das páginas de um coração. Registro afetivo e real de um intervalo no tempo daquele espaço. Importante para o João, a Teresa, o Joaquim e a Maria... Importante para os contemporâneos e descendentes.

No livro cabe a vida.

Em 26 de março de 1487 foi impresso o primeiro livro em Portugal, o Pentateuco, em hebraico.