Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, no Brasil, Emmanuel Santiago é professor, pesquisador e poeta. Conversei com ele sobre poesia, seu campo de atuação, e perguntei: os versos podem modificar a realidade? Vejam alguns trechos da conversa transcritos a seguir.
Cristiane: Há poemas que denunciam questões difíceis do contexto em que se inserem. Outros, não. Em que medida o poema, sendo engajado ou não, pode resistir?
Eu já tive oportunidade de refletir sobre isso, porque, durante a pandemia, a revista Opiniães1, organizada pelos alunos de Literatura Brasileira da USP, fez um dossiê sobre o assunto. Convidaram várias pessoas para responder a essa pergunta. Eu fui uma das pessoas. E a pergunta era justamente sobre a poesia como resistência.
Cristiane: Sim, eu também publiquei um texto nesse volume. Mas acho que era mais difícil a questão, porque queriam saber se a poesia podia existir e resistir num tempo de pandemia.
Eu respondi a essa pergunta, partindo do Benjamin, pensando naquelas teses sobre a história, em que ele fala que todo monumento da cultura é um monumento da barbárie. E eu comecei a pensar que eu não acho que a poesia tem poder de transformar a realidade. Mas acho que a minha função como poeta, quando eu trabalho com essas questões que requerem um certo engajamento, é, no mínimo, fazer a poesia denunciar a barbárie, nem que seja assumindo a própria impotência.
Tem uma charge que eu acho muito brega, muito cafona, com um casal andando na rua. Aí o cara fala assim: “E agora? O que a gente faz?”. E a menina responde: “Poesia, os canalhas detestam poesia”. A verdade é que os canalhas estão c... pra poesia. Os leitores de poesia formam um nicho muito específico e muitas vezes o que se faz é pregar para convertidos, embora eu tenha um público um pouco variado, justamente porque eu trabalho com formas fixas e, às vezes, pessoas mais orientadas para o conservadorismo acabam lendo os meus poemas. Mas acho que é isso, eu penso a minha poesia como uma denúncia da barbárie contemporânea, mesmo assumindo essa questão da impotência. Então, a quarta parte do meu segundo livro é toda sobre isso.
Só que pra falar da barbárie contemporânea eu vou usar a alegoria. Então, por exemplo, quando eu vi o incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, escrevi o “Queimemos de Alexandria”, que é sobre a biblioteca de Alexandria. Aquela sextina que eu escrevi sobre o Santo Antão, na verdade, é um poema sobre a tortura. Tanto que a chave de leitura está na epígrafe, que é aquele poema que o Alberto da Cunha Melo escreveu pro Vladimir Herzog. Então pego a figura do Santo Antão e ela é um pouco essa alegoria dessas vítimas do Estado. E o que me leva a lançar mão da alegoria? Porque o poema engajado pode cair na armadilha de ser um poema circunstancial. E que, uma vez que aquele contexto passe, ele se torne inacessível para os leitores. Então eu penso em como eu posso transformar essa experiência contemporânea em algo que, embora o meu leitor futuro, o meu leitor virtual, não vá decodificar as circunstâncias que deram origem àquele poema, possa sentir algo daquela mensagem que eu estava tentando passar. E aí eu vou utilizar várias alegorias. Há a alegoria do Santo Antão.
Tem aquele poema sirventês que eu escrevi, o “Havendo paz, eu me rebelo”, uma sextina inspirada no Bertrand Born, um poeta provençal, traduzido pelo Augusto de Campos, naquele livro Verso, reverso, controverso2. Nele, eu retomo a ideia de escrever um poema com uma persona do Bertrand Born. E a ideia é pensar o conservadorismo no Brasil.
Cristiane: Esses são poemas que fazem denúncias, mesmo por meio da alegoria. E os poemas que não fazem uma denúncia aberta? Também resistem? Utilizo o verbo “resistir”, pensando no texto “Poesia-resistência”, de Alfredo Bosi, parte do livro O ser e o tempo da poesia3.
Eu sou muito pessimista. Eu acho que existe um desejo, o poema expressa um desejo de resistência. Mas não sei se ele resiste. E expressar o desejo de resistência já é alguma coisa diferente de expressar o puro conformismo. Que resistência é essa? É essa de você, dentro desse contexto de tantas contradições, dentro desse momento histórico em que a gente vive, roubar algum tempo do capital. Às vezes isso acontece literalmente. Eu lembro de que alguns poemas de A ave lúcifer de fato foram escritos num momento em que eu deveria estar trabalhando ou fazendo alguma outra coisa. E pior que não é nem roubo, é uma reparação. Então acho que a poesia expressa um desejo de resistência. Se ela de fato resiste, aí eu acho que não. A poesia é um luxo burguês de fato e o que eu espero é que um dia esse luxo esteja ao alcance da maior parte da população.
Que todo mundo tenha acesso a ela, que as pessoas tenham a possibilidade de formar interesse pela poesia. Mas isso não é a poesia que vai fazer. A poesia vai se tornar democrática, quando as condições mudarem, mas a poesia em si tem um poder muito limitado. Mas, pensando um pouco, por mais pessimista que eu seja, o simples fato de eu poder escrever um poema denunciando é algo que me ajuda a lidar com a situação. Escrever é um processo catártico. Pode ser que algum leitor tenha esse momento catártico também com a minha poesia. Mas não acho que é isso que vai de fato resistir e mudar alguma coisa.
Notas
1 Almeida, Aline Novais de; Caldas, Juliana. Manifesto-Mosaico: como suturar com fios desencapados? Opiniães, São Paulo, Brasil, n. 16, p. 342–466, 2020.
2 Campos, Augusto de. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 2009.
3 Bosi, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix; Edusp, 1977.