As últimas décadas foram marcadas por significativos desafios para a humanidade, principalmente no que se refere aos desenvolvimentos sociais necessários para o fortalecimento da noção de globalização solidária enquanto agente nas políticas de governança nacionais. Antes de tudo, é preciso estabelecer a ideia da globalização de outra forma. À luz de Milton Santos1, seria ela o processo de cooperação entre nações e não somente através da homogeneização das culturas construídas nos múltiplos espaços no globo. Coincidentemente, ou não, esse segundo entendimento acerca do fenômeno da globalização é o anúncio dos mesmos desafios que se pretende enfrentar pela garantia do direito à vida digna a todos(as).
O processo de globalização, como explanado pelo autor brasileiro, carrega consigo parte de uma contradição característica do curso da humanidade nos últimos séculos. De um lado, observa-se, no advento do capitalismo e em nome do bem-estar social global, o domínio (ou tentativa) do humano ao que lhe é natural, seja pela tecnificação dos saberes, ataques e intolerâncias às pluralidades e diferenças culturais, fetiche às formas e desprezo aos conteúdos. Nesse processo alienado e fortalecido pelo capital, a globalização acaba se confundindo com um fenômeno de uniformização dos espaços, das culturas, das pessoas e do desejo. Perversamente, o homem moderno segue agredindo a si e seus iguais pela promessa de uma boa vida individualizadamente fantasiada, que deixa brechas para o mal funcionamento sistêmico das instituições.
Do outro lado, tem-se a compreensão de uma globalização enquanto mecanismo facilitador das negociações internacionais, sendo capaz de aumentar o alcance, principalmente econômico, de diferentes regiões do globo. Ainda que os Estados, particularizados, detenham o domínio político e legislativo de suas respectivas localidades e espaços geográficos, entender a globalização enquanto política de Estado se faz necessário para uma governança mais eficaz.
Nesse contexto, é imperativo o fortalecimento de uma outra globalização, que norteie os acordos e as discussões mundiais em respeito à vida e à dignidade de todos. Uma vez que, segundo Milton Santos, podemos pensar na construção de um outro mundo, mediante uma globalização mais humana. O desafio de estabelecer esta outra globalização operando no mundo moderno é acompanhado, por óbvio, do enfrentamento às desigualdades encontradas não só a partir das diferenças culturais entre as nações, mas também de seus desdobramentos econômicos.
No século XX, os avanços econômicos, sociais e tecnológicos promoveram melhorias significativas na qualidade de vida e saúde global, embora tenham também exposto tantas disparidades entre os países. A globalização, caracterizada como um momento de extremos, gerou desafios sociais e de saúde, especialmente em nações em desenvolvimento, conhecidos atualmente como o Sul Global. Como resposta, surgiram esforços de cooperação internacional, como a "diplomacia global da saúde", visando abordar preocupações como a saúde pública, insegurança alimentar e mudanças climáticas, refletindo em compromissos como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Instituições como a Fundação Oswaldo Cruz têm estabelecido centros dedicados à pesquisa e formação de recursos humanos em saúde internacional, enquanto potências emergentes como o Brasil se destacam na cooperação Sul-Sul, fortalecendo sistemas sociais e de saúde em países em desenvolvimento através de estratégias como a criação de instituições e blocos regionais centrados na saúde, indicando uma crescente importância da saúde global e da diplomacia da saúde na política externa e cooperação internacional.
A emergência da saúde global e da diplomacia da saúde reflete uma mudança paradigmática na cooperação internacional, buscando superar a competição entre as nações em prol da solidariedade global. Neste contexto, instituições acadêmicas e países como o Brasil têm investido na estruturação de capacidades próprias em saúde internacional, destacando-se a cooperação Sul-Sul e a formação de blocos regionais com foco na saúde. Com a crescente complexidade dos desafios de saúde, espera-se que essas áreas se expandam e se fortaleçam, tanto como campos disciplinares quanto como instrumentos da política externa, moldando a próxima década como um período de maior cooperação e comprometimento com o bem-estar humano em escala global.
Diante do exposto, é evidente que a ascensão da "saúde global" e da "diplomacia da saúde" representa um marco significativo não apenas na esfera da política externa e da cooperação internacional, mas também como campos de estudo e formação de profissionais. Prevê-se que esses domínios experimentem um grande crescimento tanto globalmente quanto localmente nos próximos anos, à medida que a solidariedade internacional supere a competição sustentada por uma organização mercadológica. Assim, é imperativo que continuemos a fomentar e fortalecer essas iniciativas, visando um futuro onde a saúde seja verdadeiramente tratada como um direito humano fundamental e um bem público global.
Notas
1 Santos, Milton. Por uma Outra Globalização. Do Pensamento Único à Consciência Universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.