Desde sua origem no final do século XIX, a Psicanálise enfrenta o desafio de se constituir como campo de conhecimento válido frente à comunidade científica marcada, antes como agora, pelo domínio da racionalidade positivista em seus diferentes espectros. Ainda que esse desafio não seja exclusividade dada à teoria psicanalítica e até continuem a se atualizar no presente, os desenvolvimentos da Psicanálise, na esteira de desenvolvimentos sociais e históricos, constituirão essa teoria como conhecimento fundamental acerca do sujeito, da cultura, da vida individual e da vida coletiva.
As resistências à Psicanálise não foram suficientes para manter ocultas as verdades incômodas que Freud anunciava. Afinal, desde sua origem, a Psicanálise incomoda ocupando lugar no debate científico e em práticas imersas no tecido social. Especialmente pelo avesso, na inteligibilidade de processos subjetivos e objetivos que fazem funcionar esse mundo. Essa fertilidade teórica e prática deriva um desenvolvimento que não se deu, como muitos afirmam, sob o olhar e a aprovação de poucos ou, antes, sob aprovação somente daqueles envolvidos no seu processo de constituição.
Não é suficiente reportar a uma certa solidão teórica de Freud no momento de estruturação teórica da Psicanálise em razão das resistências típicas da sociedade científica Vienense da época, como argumentos para justificar uma posição certamente marginal da Psicanálise no conhecimento acadêmico. Essas presunções podem ser lançadas compreendendo que, já nos seus primórdios, a Psicanálise obterá notoriedade e legitimidade diante da sociedade burguesa que se consolidava. Afinal, a sua prática clínica alcança resultados e seus postulados se estabelecem numa teoria que se transformou num dos objetos privilegiados de análise e crítica do saber contemporâneo. Nesse sentido, o campo da Psicanálise se sustenta sob uma epistemologia própria que, no seu diálogo com modelos científicos estabelecidos, subverte o modelo cientificista hegemônico e garante uma posição válida de saber. Essa posição implica o desenvolvimento da teoria desde Freud em formulações e aportes que se atualizam no debate contemporâneo.
Em contrapartida, é o próprio Freud que, já em 1918, aponta para uma certa ineficiência substancial desta notoriedade do tratamento psicanalítico enquanto dispositivo para o enfrentamento das neuroses. O psicanalista sugere que, dada a grande quantidade de sujeitos em sofrimentos desta natureza pelo mundo e o nada proporcional número de pessoas implicadas na atividade analítica, é necessário pensar maneiras de se estender o alcance da psicanálise também para os espaços coletivos e instituições de saúde. Nesse sentido, o campo da Psicanálise se sustenta sob uma epistemologia própria que, no seu diálogo com modelos científicos estabelecidos, subverte o modelo cientificista hegemônico e garante uma posição válida de saber. Essa posição implica o desenvolvimento da teoria desde Freud em formulações e aportes que se atualizam no debate contemporâneo.
Além disso, entende-se que não é somente a sociedade burguesa capaz de se beneficiar das aspirações freudianas sobre o tratamento das neuroses, e nem seria este o objetivo, mas que a Psicanálise deve se valer, apesar de todos os desafios e descrenças que possa sofrer, na adequação de sua técnica às novas condições históricas e sociais. Assim, nas palavras de Freud:
Não duvido de que a força argumentativa das nossas crenças psicológicas também impressionará uma pessoa sem formação, mas precisaremos encontrar a expressão mais simples e palpável dos nossos ensinamentos teóricos.
Se no século passado devido às condições de nossa existência [dos psicanalistas], estamos limitados às camadas mais abastadas e mais altas da sociedade, que costumam escolher, elas próprias, os seus médicos. [...] Para ampla camada da população que sofrem muito profundamente com as neuroses, nada se pode fazer. Na atualidade se faz imperativo adequar a técnica psicanalítica para a realidade popular, principalmente no contexto brasileiro, que sistematiza serviços de saúde e assistenciais gratuitos e universais em todo território nacional. Condição idealmente profetizada por Freud como uma situação que pertence ao futuro, que para muitos dos senhores parecerá fantasiosa. Pois este futuro já se apresentou, real e fortalecido, enquanto política de Estado, demandando a presença da Psicanálise em seus espaços de atenção e cuidado à saúde.
Para além dos desenvolvimentos teóricos postos, desde Freud até Lacan, estão em causa desenvolvimentos relativos àquele que é a ordem do fundamento da psicanálise: o sujeito. Contudo, a elucidação radical do sujeito implica sempre também a elucidação dos processos que o constituem e que dizem respeito também às formas de organização social.
Há algo de um caráter dialético na constituição do sujeito que, frente ao Outro, se estabelece em sua posição de desejo. Ou seja, é na objetividade do real que se estrutura a subjetividade de um determinado momento histórico, naquilo que há de singular e universal na condição de ser. Nesse sentido, pode-se dizer que as mudanças sociais que assolaram e assolam a sociedade em diferentes tempos marcam significativamente as formas de ser, de existir, de sofrer, entre mais, experienciadas pelos sujeitos que nela vivem. Lacan, ao indicar que o sujeito é efeito do significante e do campo simbólico, ilumina esta dialética. Atestar que a palavra só é palavra quando endereçada a alguém, capaz de creditá-la, eleva o dispositivo da Associação Livre a centralidade do trabalho analítico. É importante lembrar que toda fala demanda uma resposta, mesmo que seja o silêncio, o nada. Nesse sentido, aquilo que vai além da fala é parte fundamental do trabalho analítico, onde se busca localizar o vazio deixado pela realidade (aquilo que não se diz), levando o sujeito ao ato de mudança de posição.
Dessa forma, há no próprio desenvolvimento do conhecimento o compromisso de enfrentar os desafios do seu tempo, tanto no que concerne ao sujeito quanto às estruturas objetivas e subjetivas que o constituem. O desafio posto a Freud, se atualizou em Lacan, e se atualiza no presente, não podendo ser enfrentado hoje sem as contribuições da Psicanálise nos seus desenvolvimentos.
No trabalho em saúde mental, no interior de Minas Gerais, encontra alguns desafios que o aproximam da atividade analítica, principalmente em relação a sua ética. Observa-se, dentre outras formas, a degradação do serviço a partir do desconhecimento da equipe de trabalho sob diretrizes básicas do trabalho em saúde mental, objetivadas em movimentos assistenciais e normativos de exclusão social. São frequentes, por exemplo, situações em que os pacientes são encaminhados inadequadamente para tratamentos psiquiátricos e farmacológicos, por padrão de serviço, ignorando possibilidades de intervenções terapêuticas em respeito à construção autônoma e singular do arranjo subjetivo de cada sujeito.
É importante dizer que as políticas públicas de saúde mental no Brasil há muito objetivam a extinção dos manicômios e tudo que represente, de alguma forma, os manicômios, com diretrizes que defendem a inclusão social dos usuários dos serviços de atenção psicossocial, bem como sua autonomia e liberdade. Nesse contexto, cabe pensar a psicanálise naquilo que é comum às duas, ou seja, uma forma de se estruturar e desenvolver seus aportes clínicos longe de qualquer forma de controle e normatização social.
Com esses pressupostos é que se propõe o diálogo entre a clínica psicanalítica e as políticas de Estado objetivadas para o acolhimento de pacientes em sofrimento psíquico. Com isso, no limite, identifica-se as potencialidades e os limites da Psicanálise no alcance dos tratamentos desenvolvidos em instituições e dispositivos públicos de atenção à Saúde Mental dos brasileiros e imigrantes. Preliminarmente, o pressuposto é que a população assistida nestes espaços se beneficia substancialmente com as contribuições práticas da clínica psicanalítica, bem como dos modelos de Serviços, tendo seus direcionamentos éticos em respeito ao desejo e ao sujeito do inconsciente.
Notas
1 Freud, S. (1919[1018]). Caminhos da Terapia Psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica, vol. 6. Belo Horizonte: Grupo Autêntica.
2 Lacan. J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Lacan J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 238-324.