Na Ribeira desse rio

(Poema de Fernando Pessoa musicado por Dori Caymmi)

Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio.

Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
Numa sequência arrastada,
Do que ficou para trás.

Vou vendo e vou meditando,
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando,
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando.

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali,
E do seu curso me fio,
Porque, se o vi ou não vi.
Ele passa e eu confio.

Sempre que me vejo diante de um rio, sinto o poder das águas que ocupavam o planeta bem antes de nós e que correm como veias pela terra fomentando a vida. Quando me deparo com o Rio das Velhas, poluído e desrespeitado, lembro de sua História e de tudo que ofereceu àqueles que se aproximavam ou se fixavam as suas margens. Afinal, "o rio não quer chegar a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo” (Guimarães Rosa). Ele quer simplesmente existir, e, ao existir, possibilitar que tantas outras vidas também existam. O Rio das Velhas luta para seguir a sua vocação e carregar toda sua ancestralidade.

Os rios sempre foram um marco na origem da Humanidade. As primeiras civilizações surgiram às margens de rios como o Tigre, Eufrates, Nilo, Indo e tantos outros. Através dos rios os povos obtinham seus meios de defesa, divisão territorial, alimentação, transporte, comunicação, comércio, energia, irrigação, água potável que os possibilitavam sobreviver e desenvolver. Algumas vezes eram também fontes de grandes infortúnios como enchentes e secas devastadoras. Mas havia sempre grande respeito e reverência aos rios. Lendas, músicas e histórias guardam a memória da relação dos homens com as águas correntes.

No Brasil não foi diferente, o povoamento deu-se ao longo dos rios e muitas são as histórias que os cercam. A História do Rio das Velhas é simbólica e representativa para o país. O próprio nome do rio já carrega consigo uma lenda. O bandeirante Bartolomeu Bueno, ao se aproximar do rio, teria se deparado com três velhas índias acocoradas em suas margens, nas proximidades de Sabará. Essa cena foi registrada pelo poeta Cláudio Manoel da Costa no poema Égloga Arúncio. Receber um batismo poético como esse é para poucos!

Mas outra interpretação para o nome explica sua origem a partir da tradução feita pelos bandeirantes que desbravaram o leito do rio, ocupado por povos indígenas Goianás, Guarachués e Cataguás. Esses povos se referiam ao rio como Rio Uaiami, Guacuí ou Gwaimi-y (gwaimi / velha e y / água) que foi traduzido como Rio das Velhas. Na verdade, os bandeirantes paulistas não conheciam a cosmologia indígena e fizeram uma tradução rasa. Na visão sagrada dos povos nativos o rio era reverenciado como “Avó Água”, antecessora da “Mãe Terra”.

O atual Rio das Velhas é como uma coluna vertebral de Minas Gerais. É o maior afluente do Rio São Francisco e cruza o estado rumo ao norte. O seu leito dá inúmeras voltas como uma serpente, parecendo desejar retornar a sua nascente em Ouro Preto. Tem uma extensão de 800 km inteiramente no território mineiro e banha 51 cidades. Mas tamanha imponência não o protegeu da ação destrutiva do homem.

O povoamento humano na bacia do Rio das Velhas começou há aproximadamente 12 mil anos, como comprova diversos estudos arqueológicos. Ao longo do Velhas viveram animais da Megafauna extinta como tigres-dente-de sabre, preguiças e tatus gigantes, ao lado de agrupamentos humanos primitivos como o Povo de Luzia. Na região calcária do Carste de Lagoa Santa, o rio é alimentado por ribeirões subterrâneos onde lagoas surgem e desaparecem “misteriosamente”, como a famosa Lagoa do Sumidouro. Nessa região da Bacia do Rio das Velhas a História da ocupação humana na América foi desvelada e as ossadas humanas de Luzia e de muitos de seus contemporâneos foram encontradas, revelando nossas origens remotas.

Tempos depois, quando era habitado por diversificados agrupamentos indígenas, foi cenário da tão sonhada e perseguida descoberta de ouro no Brasil. Foi no vale do Rio das Velhas que o desejado metal foi encontrado pela primeira vez e somente com o uso de suas águas a mineração foi possível. Sem água para o processo de extração, de nada valeria todo o ouro encontrado.

Do Rio das Velhas partiram rotas de descobrimento e os pioneiros povoamentos do estado. Os bandeirantes fundaram as primeiras cidades de Minas Gerais, todas próximas ao Rio das Velhas: Ouro Preto, Sabará, Caeté, Santa Luzia e parte do município de Diamantina. Todas vivendo de suas águas, de suas riquezas e de sua força ancestral.

Muitos foram os cientistas e viajantes naturalistas que passaram pela bacia do Rio das Velhas ao longo dos séculos e o descreveram em seus relatos: Rugendas, Richard Burton, Saint Hilaire, Spix e Martius, Peter Lund e outros. Riqueza de uns, miséria de outros. Tributação de uns, contrabando de outros. Sonhos de uns, pesadelos de outros. O Rio das Velhas foi testemunha de todos.

O Rio das Velhas presenciou em suas margens conflitos entre bandeirantes, Guerras e Inconfidências, motins de escravos, extermínio das populações indígenas, criação de Quilombos, exploração por naturalistas estrangeiros, transferência da capital da antiga Vila Rica (Ouro Preto) para Belo Horizonte, desenvolvimento das cidades e de outras atividades econômicas poluidoras. Sofreu com o garimpo, com o desmatamento de suas matas ciliares, com a exploração de minério de ferro das montanhas que o circundam.

Mesmo quando ocorreu o esgotamento da mineração, outras atividades se desenvolveram em torno do Rio das Velhas, como a pecuária e a agricultura. O processo de ocupação e degradação prosseguiu, sobretudo pelo desmatamento para a formação de pastos e para a implantação de monoculturas. No Alto Rio das Velhas a situação foi ainda mais agressiva com a implantação de manufaturas industriais de ferro no século XVIII e de indústrias siderúrgicas nos séculos seguintes, causando grande impacto ambiental. Mais tarde, o rio ganhou ainda a responsabilidade do abastecimento de água às cidades, do recebimento de esgotos e resíduos, da irrigação de lavouras. O Rio das Velhas, exaurido, segue lutando para sobreviver às constantes e agressivas intervenções humanas.

O que estariam pensando as três velhas índias acocoradas em suas margens sobre nossa atitude “civilizada” frente àquele que nos encheu de vida e riquezas? Logo me vem à lembrança o grandioso e trágico amor de Riobaldo e Diadorim de Grande Sertão Veredas que se iniciou e se findou às margens do Rio das Velhas, nos sertões mineiros. E clamo ao Gwaimi-y que inspirou Guimarães Rosa para sensibilizar as novas gerações para reverenciá-lo e protegê-lo.

Ele passa e eu confio.