O meu primeiro contacto com a peça “Salomé” foi em 2016/2017, quando, depois de ler “O retrato de Dorian Gray”, decidi aventurar-me pelo decadentismo de Wild. Originalmente lançada em 1891, na França, esta peça de teatro apresenta num único ato toda a história da personagem principal, oferecendo ao leitor um texto de fácil compreensão, mas igualmente inebriante e cativante.
Claro que, antes de estudarmos mais aprofundadamente o conteúdo literário da peça, importa entender quando esta foi lançada, para então podermos discutir o seu caráter transgressor. Falamos aqui do século XIX, marcado profundamente pelos ideais de hierarquização e superioridade masculina, que enclausuravam a mulher, submetendo-a a um papel de invisibilidade. Sem participação ativa na sociedade, a mulher vivia inteiramente para o lar, sendo completamente marginalizada em todas as áreas, incluindo a literatura. Pelo que se observa, até ao Romantismo, as mulheres tinham pouca representação na nossa cultura, inserindo-se sempre nos estereótipos de mãe, bruxa ou prostituta. No entanto, com a revolução industrial o cenário muda e a figura feminina ganha uma nova dimensão, sendo agora representada como um perigo. No ideário francês, a mulher começa a ser representada como um ser ambíguo, associado ao pecado, ao mal e à morte.
É neste contexto, e como forma de retratar as insatisfações da época, que diversos escritores procuraram utilizar os seus textos para denunciar a marginalização da mulher. “Salomé” é um destes exemplos. A peça de Oscar Wilde procurou desafiar as convenções sociais, apresentando uma visão provocativa e complexa da feminilidade.
Wilde, inspirado pelo decadentismo do final do século e pelo simbolismo francês, revelou-se contra as normas impostas pela sociedade, onde a mulher era inferiorizada, e apresenta-nos uma figura feminina irreverente, fatal e extremamente sensual, que causa tanto repulsa como admiração. Na sua obra “Salomé”, o autor procede a uma representação complexa e multifacetada das mulheres, retratando a personagem principal como uma femme fatale, ou seja, uma mulher sedutora e perigosa que provoca a queda daqueles ao seu redor. Ela é apresentada como manipuladora, astuta e ambiciosa, contrariando as noções tradicionais de feminilidade e passividade.
Baseada na narrativa bíblica, “Salomé”, apresenta a mulher como um ser altivo, perspicaz e sedutor, que utiliza a sua beleza para obter o que quer. Ela é a representação da nova mulher, que, insatisfeita com o seu papel na sociedade, procura fugir da opressão sofrida. Ela é erótica e expressiva, não aceita ser submissa nem silenciada e não se adequa aos padrões de machismo e conservadorismo impostos.
Se repararmos, a obra é disruptiva em si na forma como representa a mulher. Na bíblia, Salomé é apresentada como um modelo para a sociedade, um ser insignificante que está ali para servir, seguir ordens e atender os desejos masculinos. A passagem demonstra-nos que a mulher era tratada como um ser inferior, sem direito a falar e sem participação na sociedade. Salomé não passa de um instrumento para realizar as vontades da sua mãe.
Em Oscar Wilde, por sua vez, a protagonista é centro das atenções. A peça acontece no palácio de Herodes Antipas, onde Salomé, enteada do Tetrarca, é rejeitada pelo objeto do seu fascínio, o profeta João Batista. Para ter o que deseja, a jovem, tomada pelo fascínio erótico, realiza uma dança para Herodes, exigindo a cabeça de João Batista numa bandeja de prata, como recompensa. No final, Salomé, consumida pela irracionalidade do seu desejo, beija apaixonadamente a cabeça decapitada do profeta.
A obra de Wilde apresenta Salomé como um ser lascivo, que, por vontade própria, dança para Herodes e o convence a entregar-lhe a cabeça de João Batista para que ela possa finalmente obter o que deseja: beijar o profeta e satisfazer o seu desejo carnal, antes negado. Salomé transforma-se no arquétipo de sensualidade, tentação e perdição, sendo a mais pura representação do gozo feminino. A personagem é o símbolo da Femme fatal: uma mulher bonita e misteriosa que engana e desafia os homens da peça.
Abordando temas como o poder destrutivo da luxúria, a inevitabilidade do destino e os perigos da obsessão, a escrita de Oscar Wilde tende a utilizar o olhar como forma de desejo sexual ao descrever, logo nas primeiras linhas, a forma como Herodes olhava para Salomé, uma jovem princesa de beleza excecional. No final da peça, o objeto de desejo transfigura-se, e a cabeça decapitada do profeta passa a ser o centro do desejo sexual e da vingança da protagonista.
Apesar de procurar quebrar os estereótipos da época, a representação de Salomé trouxe consigo vários problemas, sobretudo se analisarmos a peça tendo em consideração o contexto social e cultural da época. Em primeiro lugar, a representação da mulher como sedutora e obsessiva alimenta os estereótipos negativos associados ao género, o que reforça a visão de que as mulheres são inerentemente seres irracionais e impulsivos. A conduta desafiante de Salomé também causou algumas controvérsias: se por um lado alguns viam a sua determinação e assertividade como um sinal de liberdade relativamente às expetativas tradicionais colocadas sobre as mulheres, por outro havia quem considerasse as ações da personagem como uma ameaça à ordem social.
A representação da mulher na peça de Oscar Wilde é muito diferente do evangelho, apresentando Salomé como uma personagem forte, com vontades, desejos e que não se deixa controlar, ao contrário da Salomé da bíblia, que é submissa às vontades dos restantes personagens. Ao mesmo tempo, a peça de teatro é disruptiva em si, ao protagonizar temas como a sexualidade, o desejo, a luxúria, e a violência. Claro que, apesar de subversiva, a mulher continua a ser tratada, em segundo plano, como um objeto, tanto por Herodes, que a deseja fisicamente, quanto pelos soldados que a atacam.