A ilha de Marajó, para quem não conhece, fica localizada no estado do Pará, na região norte do Brasil. É um arquipélago que conta com mais de 500 mil habitantes e com um passado histórico e cultural dos mais antigos do Brasil, originária da antiga civilização indígena marajoara, que se foi organizando e desenvolvendo entre os séculos 5 e 14 d.C.

A história presente da ilha de Marajó e dos seus habitantes voltou a ser agora alvo nos meios de comunicação brasileiros e por todo o mundo, não pela sua beleza e riqueza cultural, mas pelas histórias de crimes hediondos lá praticados.

De salientar que, estas práticas foram reportadas já em outros anos e que cujo grau de gravidade tem vindo a aumentar, fazendo com que esta região e a sua população seja vítima de estagnação no próprio país.

O caso da região da Marajó, foi partilhado por diversas figuras públicas brasileiras, incluindo, aqueles que se intitulam como influencers e que diariamente desviam a atenção para assuntos que nada importam para o futuro do país e da melhoria das condições de vida dos brasileiros, mas que agora serviram de instrumento para que a realidade desta região fosse agora revelada.

Além da difusão em massa destes casos, foi ainda mais instantâneo a promoção e a publicação de fake News sobre a região. Não é de espantar, que alguns aproveitam a desgraça dos outros para ganharem seguidores e serem considerados grandes promotores da moralidade e dos direitos humanos.

O Observatório de Marajó, uma organização de articulação sociocultural local, afirma que "a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes" e realça ainda a importância de políticas públicas e da ação incisiva dos órgãos políticos locais e nacionais para a implementação direta dessas mesmas políticas, que devem respeitar a dignidade humana e os direitos de cada cidadão.

A ilha de Marajó é a realidade vivida um pouco por todo o território brasileiro e que grande parte, encontra-se silenciada ou desconhecida. Isto deve ser, sim, alvo de uma análise profunda de todos os decisores políticos de cada região, mas também aqueles que têm responsabilidades a nível nacional e governativa. Deve ser lembrado diariamente que só é possível responder a problemas estruturais com medidas estruturais e, nestes casos, não se trata de números e, sim, de vidas humanas.

O MP-PA (Ministério Público do Pará) e o MPF (Ministério Público Federal) são os órgãos judiciais nos quais estes casos têm sido entregues e já registraram cerca de 550 processos de crimes cometidos contra crianças e adolescentes, no ano de 2022, o que dá uma média de 1,5 registos por dia.

Além do arquipélago apresentar um nível de índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, este também inclui o município com o nível mais baixo que se regista de IDH do Brasil, Melgaço (PA). Alicerçada a este contexto, está o perigo iminente, presente na vida das crianças e dos adolescentes, tornando-se vítimas das mãos de redes organizadas criminosas de tráfico humano e de exploração infantil.

Para ser mais pragmático, é preciso mostrar a realidade como ela é e não como utopicamente gostaríamos que ela fosse. Não se deve cair no erro de romantizar a política e de idolatrar os seus governantes, pois já vimos o que acontece quando nos deixamos levar cegamente pelas vozes daqueles que se dizem ser os salvadores do país e do mundo.

Não devemos olhar para uma realidade com uma visão fictícia ou mediática, é preciso ir mais longe, mudarmos as lentes e permitir-nos conhecer o território e a cultura que é construída diariamente pelas pessoas que ali nasceram e cresceram. A participação direta e ativa da população é fundamental para a preservação do território e da sua identidade, mas igualmente dos símbolos culturais, das expressões linguísticas locais, da fauna e da flora.

Existe um paradoxo, formado e consolidado pelas elites locais, entre aquilo que é a cultura cabocla marajoara e a cultura de Marajó. A primeira é transformada por agentes externos, ou seja, foi produzida pelas mãos daqueles que nada conhecem a cultura cabocla marajoara e que se regem pela famosa lei do mercado e do turismo. A segunda, é vista como a realidade viva, ou seja, na qual o trabalho, a mudança de paradigma social, económico e político são o quotidiano dos habitantes de Marajó.

Devemos, sempre, pautar-nos pela preservação da identidade de um povo ou região, de forma a que a estetização e o branqueamento da cultura, não seja praticável. A transformação no mundo é inevitável, mas os olhos pertencentes a cada um de nós devem ser imaculados, pois além de serem a nossa identidade não podem em momento algum, ser um objeto descartável ou uma moeda de troca.