Lembrei, bem do nada, em uma quarta-feira, de um conjunto de pagode que eu ouvia no início da adolescência, lá em meados dos anos 1990. Alexa, toca Grupo Raça, por favor — li contos demais de Isaac Asimov para ser deselegante com qualquer IA —, eu pedi enquanto lavava a louça do almoço. Grupo Raça é um conjunto carioca de pagode em atividade desde 1985. Na sequência, ouvi pelo menos oito músicas que reconheci de frequentar rodas de samba nos últimos dois anos. Algumas eu lembrava a letra inteira, outras apenas partes ou refrão. Mesmo as músicas que não ouvia desde aquela época, eu ainda conseguia acertar alguns versos.
E lá, nos anos 90, eu descia do meu prédio no fim da rua para encontrar os amigos, carregando um walkman amarelo e um saco de pano também amarelo da loja de sapatos Mr. Cat — jovem branco de classe média — cheio de fitas cassete de pagode. Grupo Raça, Raça Negra, Negritude Júnior, Só Pra Contrariar, Só Preto Sem Preconceito, Art Popular.
Fiquei buscando na memória, enquanto lavava pratos e copos, de que maneira eu, um quase adolescente branco de classe média do Rio de Janeiro comecei a ouvir samba e pagode tão novo.
Meu pai não morava comigo. Aliás, nunca soube o gosto musical dele.
Minha mãe, com quem eu morava, ouvia Andreas Vollenweider, Boca Livre, Enya e o Bolero de Ravel.
Meus amigos e amigas na rua ouviam Madonna e Michael Jackson.
De onde então?
Foi quando lembrei de Mary. Quem? A empregada doméstica. A empregada negra da casa da família branca. Rosemary era linda. De Oxum, né? Tratava todos com imensa doçura, falava suave. Falava no olhar também. Na rua paravam para ver Mary passar. Não lembro a idade dela à época. Trinta anos, talvez? Usava braun no cabelo, bermuda jeans justa e amava samba e pagode. Sempre ouvia. Mary, que abdicava dos cuidados do próprio filho para cuidar do filho branco de uma madame branca.
Eu admirava Mary. Colecionava as frases de efeito que ela sempre usava — anotava na agenda tentando até imitar a letra desenhadinha dela. Durante esse início da adolescência a minha assinatura copiava a letra dela. Conversávamos sobre orixás e terreiros, folheando livretinhos de simpatias e horóscopo do João Bidu, ouvindo samba e pagode.
Resolvido o mistério. Mas, como um bom cientista social, não parei por aí. De Rosemary da Conceição cheguei a Lélia Gonzalez.
Lélia, também de Oxum, foi uma intelectual brasileira — das maiores que tivemos — negra. Comecei a ouvir falar dela no finalzinho da graduação em Ciências Sociais, de maneira muito tímida. Mas foi somente no mestrado em Antropologia, em disciplinas específicas sobre questões raciais, que pude me aprofundar.
Segundo Lélia, a mulher negra trabalhando em casa de família assume o papel de mãe: amamenta, dá banho, leva e busca na escola, limpa cocô, coloca pra dormir. É ela quem cuida. Mais que isso. Ao exercer essa função materna, a mulher negra passa também seus valores:
A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente.1
E aí, Lélia está falando de linguagem. Está indicando uma disputa discursiva que começa no âmbito familiar, aquele lugar em que todos nós recebemos nossas primeiras orientações para viver. Lugar que nos fornece uma lente específica para enxergar o mundo. E contrastando com os valores da branquitude, está a mulher negra com sua música, seu jeito de cozinhar, suas experiências de vida. Na cozinha fazendo almoço, na sala varrendo e passando pano, nessas trincheiras domésticas, a mulher negra vai vencendo a batalha discursiva em termos de cultura.
Mesmo exercendo ocupação profissional de pouco prestígio, a mulher negra — as Marys que carregam a própria família e a dos outros nas costas — é participante ativa no processo de formação da cultura brasileira, ouvindo seu samba, com suas técnicas culinárias, simpatias e rezas aos orixás. Não à toa, Lélia afirma: a cultura brasileira é negra por excelência. Do Grupo Raça à feijoada. De Rosemary à Lélia, ambas de Oxum. Do menino branco que hoje é um homem de candomblé e de samba.
Notas
1 Gonzalez, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org.: Flavia Rios; Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.