Se comprendre, c’est se comprendre devant le texte et recevoir de lui les conditions d’un soi autre que le moi, qui vient à la lecture.
[Compreender-se é compreender-se diante do texto e dele receber as condições de um eu diferente do eu, que vem através da leitura.]
(Paul Ricoeur - Du texte à l’action, Essais d’Herméneutique II, 1986 - Paris, Ed. Seuil, p. 31)
Ricoeur debruça-se sobre a perspectiva interna do sujeito, que se interpreta a si próprio através de histórias; as páginas de Temps et Récit sugerem que a história da vida não é em si mesmo um dado puro e adquirido, mas, sim, que ela é sempre obtida por “mediação” ou “refiguração” através das narrativas pelas quais o “si” ou a comunidade se definem. As vidas vão, assim, corresponder a este “tecido de histórias narradas” (1985:356). Ricoeur vai mesmo ao ponto de reafirmar (1990: 197) que apenas o trabalho da reinterpretação e da reapropriação nos ajuda a evitar a alternativa duvidosa de uma simples repetição, por um lado, e de uma errância, por outro. Deste modo, a ontologia informada e transformada hermeneuticamente, isto é, re-interpretada, vai situar-se para além das certezas onto-teológicas e sublinha que, na verdade, “raconter… c’est déployer un espace imaginaire pour des expériences de pensée ou le jugement moral s’exerce sur um mode hytpothétique” (1990: 200).
De facto, a proposta filosófica de Ricoeur possui implicações pedagógicas: Ricoeur pretenderá, através da hermenêutica, neutralizar o fosso existente entre vida e literatura, procurando remetê-las para um íntimo contacto através da leitura, para permitir que o exemplo narrado seja interpretado, avaliado e se manifeste singularmente na vida quotidiana. Para Ricoeur, a condição para possibilitar a aplicação da literatura à vida é o problema da “identificação com”, a qual contribui para a narrativisação do carácter. É através da linguagem que o homem se mediatiza e a imaginação é uma capacidade que faz com que novos mundos refaçam a compreensão de nós mesmos. Mas este poder surge das significações emergentes na nossa linguagem, cuja dimensão imaginativa opera como pedagógica. Para Ricoeur a função metafórica do “ver como” é imaginativa (1983: 271), no entanto não nos esqueçamos do facto que a narratividade carrega consigo uma dimensão prescritiva ou avaliativa e que a estratégia de persuasão ou da sedução que os narradores impõem aos leitores, nunca é neutra de um ponto de vista ético, induzindo uma reavaliação do nosso mundo. Parece-nos que Ricoeur recomenda a imaginação narrativa para procurar outros tribunais de grande instância; uma imaginação que passaremos a denominar de imaginação moral, porque opera com juízos de valor, avaliando como poderia agir se…
Na concepção de Ricoeur, a linguagem, mais do que descrever a realidade, revela-a e cria-a (Ricoeur 1988: 97). A nossa relação com o real não é directa, mas sempre mediatizada por “configurações” e “refigurações” (conceitos que serão definidos adiante, aquando a distinção da tripla mimesis). São elas que criam congruência e dão forma e sentido à experiência humana. A transmissão e a tradição assumem um papel imprescindível em relação ao processo da imaginação, na sua reformulação da realidade. Aquilo que tanto as narrativas de ficção como as obras historiográficas refazem (configuram) criativamente é o mundo da acção humana e a sua dimensão temporal profunda (Ricoeur 1986:89) algo acentuado já em Temps et Récit, pelo autor. Assim, a ficção reformula a realidade práxica; o mundo do texto intervém através da leitura no nosso mundo de acção para o figurar, esclarecendo-o e transformando-o. Neste processo, a imaginação não é uma função puramente mimética mas é também projectiva, correspondendo ao dinamismo da acção. Como nos diz Ricoeur (1986: 11) “a espiral hermenêutica concretiza-se na solução narrativa para a problemática temporal, por uma passagem da pré-compreensão do mundo da acção à transformação do mundo do leitor (mudando o seu agir)”; passagem essa que é possibilitada pela acção cruzada da ficção e da historiografia. A função narrativa é entendida por Ricoeur como ambição de refigurar a nossa condição histórica e de a elevar ao estatuto de consciência histórica, surgindo como uma mediação entre o futuro enquanto horizonte de expectativas, o passado como tradição e o presente como surgimento; o que acontece. Impõe-se, por isso, uma nova concepção do presente e da acção como “iniciativa”; a possibilidade de começar, de dar um curso novo aos acontecimentos, de metamorfose.
Não esqueçamos que em Ricoeur – Prefácio de Do texto à acção, a hermenêutica move-se ao nível da “onto-semântica” (Ricoeur 1986: 12) – todo o ser é linguagem – retomando o modelo da revelação de teologia que diz que a compreensão é uma escuta do ser. Em todo o caso, a ontologia que nos é apontada por Ricoeur emerge do “poder-fazer” e situa-se no interior da cultura em constante refiguração. Novamente chamamos a atenção para o facto de ser concedida grande importância à imaginação como capacidade de criar sentidos novos e recriar a própria realidade social e política: “direi, por meu lado, na linha de uma hermenêutica a partir do texto e da “coisa” do texto, que é, em princípio, à minha imaginação que o texto fala, propondo-lhe os “figurativos” da minha libertação” (Ricoeur 1986: 138). Será, então, possível recolocar a explicação e a interpretação num único arco hermenêutico e integrar as atitudes complementares: a explicação e a compreensão, numa concepção global de leitura, como um retomar de sentido.
O dizer de um hermeneuta é um redizer que reactiva o dizer do texto. É através de uma imaginação antecipadora do agir que podemos jogar com os possíveis práticos; é com ela que se podem comparar desejos e exigências éticas; será neste imaginário que podemos experimentar o nosso poder de fazer e tomar a medida do “eu posso” ou do “também eu, posso” (uma das dimensões do “homme capable”) e aqui vemos a importância da comparação, da analogia que procede aqui, por transferência directa da significação “eu”. Como eu, os meus contemporâneos e os meus sucessores podem dizer “eu”. Como sublinha Ricoeur (1986: 227) “A verdade da nossa condição é que o elo analógico que faz de todo o homem o meu semelhante, só nos é acessível através de um certo número de práticas imaginativas...” Todo este movimento vai no sentido, ora de uma iniciativa própria, ora de uma responsabilidade, pois, em primeiro lugar “eu posso”, em segundo lugar “eu faço”, em terceiro “eu intervenho”; inscrevo o meu acto no curso do mundo e em quarto, “eu cumpro” o que me propus fazer em primeiro lugar. É a minha Palavra que, como referem os nativos americanos no seu código ético, eu faço andar; eu ponho em prática; é o meu desejo em acção.
A literatura, familiarizando-nos com os começos e os termos das narrativas, ajuda-nos a estabilizar os começos reais, que constituem as iniciativas, e afixar os contornos dos fins provisórios das acções. E, como nos ensina a teoria da leitura, a narrativa implica a dimensão normativa e avaliativa, pois induz-se, como já vimos, o leitor a uma visão do mundo e a uma nova avaliação de si próprio. Ricoeur (1990: 335) acentua o carácter dinâmico da ética, sempre projecto a realizar e consequentemente acentua a noção de processo, uma vez que “viver bem” é algo que está sujeito à mudança, exigindo um contínuo ajustamento entre a lei e a situação particular. É por isso necessário ter em conta o contexto: “É preciso notar que cada projecto ético, o projecto da liberdade de cada um, surge no meio de uma situação que já está assinalada eticamente; as escolhas, as preferências, as valorizações já vêm de trás e cristalizam-se nos valores que cada um encontra ao acordar para a vida consciente” (1985: 64). Mas para haver uma transformação qualitativa no agir humano, há que levar o homem a repensar o sentido do seu agir. É neste sentido que a narrativa pertence já ao campo da ética, cabendo ao leitor fazer a escolha que mais lhe convier, entre todas as outras que a narrativa lhe sugere. Quando este processo se desenrola estamos perante a narrética; um novo conceito que introduzimos neste artigo e que remete para a intersecção da narrativa com a ética, quando se estabelece o processo dinâmico de leitura e interpretação, isto é, a hermenêutica da narrativa. Deste modo, a hermenêutica da narrativa é a metodologia necessária para chegar à narrética.
Em presença do desajuste das teorias morais, cumprirá à ética resituar o homem no mundo, através de uma reinterpretação dos valores e da sua readaptação às escolhas e liberdades pessoais. É uma questão de intencionalidade e que se encontra no conceito de narrética, em que o diálogo entre o eu do leitor e o tu da obra exige a diferença de horizontes e se insere no mundo ao situar-se no domínio das escolhas concretas. Assim, a narrética implica o passar primeiro pela análise da praxis - em si plural e multiforme - para a seguir, ao interrogar-se sobre o sentido das acções feitas e/ou narradas, encontrar a dimensão que lhe dá sentido. Como afirma Ricoeur (1990: 139) “…a teoria narrativa só faz a mediação entre a descrição e a prescrição quando o alargamento do campo prático e a antecipação das considerações éticas estão implicadas na própria estrutura do acto de narrar” e, neste sentido, a narratividade introduz a ética; promove uma consciência reflexiva porque se dirige a convicções, a “fazer acreditar” no que está a ser contado; porque designa valores e expõe o agente da acção enquanto sujeito humano que faz algo de algum modo, numa qualquer circunstância e com um determinado fim.
Destaquemos que, para Ricoeur, uma das funções capitais da narrativa consiste em configurar permanentemente regras axiológicas, seja através da sua determinação escrita, como é o caso dos mitos, ou da sua livre reestruturação, como é o caso da literatura e do romance. Assim, a narrativa pode constituir-se num modelo, num laboratório de experimentação de valores (Ricoeur 1983: 93). Porém, enquanto a “mimesis” I nos revela a prefiguração da narrativa, a “mimesis” II corresponde à configuração representativa da acção. Enquanto no primeiro momento se discute a pertinência das condições de possibilidade de uma obra, neste novo conceito de representação oferece-se uma configuração inovadora e ficcional dos acontecimentos da acção. Porquê? Porque como diz Ricoeur, toda a configuração “abre o reino do” como se” (Ricoeur 1983: 101). Cada obra é uma variação imaginativa sobre o tempo; é uma viagem nesse tempo. A história de uma personagem, em analogia com a nossa própria história, é pautada pelo tempo do mundo mas é vivida temporalmente por cada um e nesse tempo real, fórmulas linguísticas como “conta-me a tua história”; “Isso são histórias!”; “É sempre a mesma história!”, fazem parte do nosso quotidiano fazendo-nos consciencializar a importância das narrativas no nosso mundo. Não só das narrativas mas da função da ficção; vejamos o que diz Ricoeur a este respeito: “A função da ficção é (…) indivisivelmente reveladora e transformadora em relação à prática quotidiana; reveladora no sentido em que traz à luz traços dissimulados, mas já desenhados no coração da nossa experiência práxica; transformadora, neste sentido de uma vida, assim examinada, é uma vida mudada, uma vida outra. Atingimos aqui o ponto em que descobrir e inventar são indiscerníveis” (Ricoeur 1985: 229). A construção de um mundo fictício, imaginário, visa proporcionar a distância necessária à revelação e transformação da nossa vivência quotidiana. O entrecruzamento entre o mundo da obra e o mundo do leitor amplia a subjectividade deste último, enriquece-o nos domínios capitais da sua relação com a realidade. Que domínios? Precisamente aqueles que condicionam a sua captação da narrativa, que prefiguram a sua recepção, a saber, a linguagem, a simbólica da acção e o tempo; isto quer dizer que, a expressão linguística, o comportamento e a vivência temporal do intérprete são alterados, tanto mais quanto a obra ecoar no seu espírito. A estrutura sintáctica dos nossos enunciados, a complexidade semântica da expressão, o conjunto de crenças e valores que pautam a conduta, a vivência temporal da realidade histórica, numa palavra, o mundo que nos envolve, é transfigurado através do encontro entre nós e a obra que lemos; como afirma Ricoeur “o caminho mais curto de si a si é sempre o pensamento do outro” (Ricoeur 1975:301).
O plano da refiguração (mimesis III) posiciona, em termos novos, o problema da recepção estética de uma obra; investiguemos, pois, o poder de refiguração da narrativa, correspondente à mimesis III ricoeuriana, isto é, o poder que a obra possui de alterar o mundo dos seus leitores e o do leitor, de refigurar a obra através da sua singular interpretação. Diz-nos Ricoeur que ela “marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do leitor.” (Ricoeur 1985: 230). Sem o confronto entre os dois mundos, a obra narrativa não pode actualizar a sua experiência fictícia e será, porventura, neste conceito de refiguração que se joga, a nosso ver, uma das dimensões mais significativas e decisivas da experiência simbólica da narrativa. A construção de modelos simbólicos narrativos visa, mais do que construir um mundo autónomo e fictício, redimensionar integralmente a nossa forma de habitar o mundo. Segundo Ricoeur, a função da ficção é transformadora, reveladora, no sentido em que uma vida examinada, é uma vida mudada, uma outra vida (Ricoeur 1985: 229); assim a construção de um mundo fictício, imaginário, pretende proporcionar a distância necessária à revelação e transformação da nossa vivência quotidiana. O conjunto de valores e de crenças que pautam a conduta, a vivência temporal de uma realidade histórica, é transfigurado através do encontro entre nós e a obra que lemos. No entanto, Ricoeur chama a atenção da necessidade de não se perder a dimensão referencial da obra (ibidem), já que uma hermenêutica do texto literária só está concluída, quando, para lá da compreensão e explicação de uma obra, discernimos o seu ponto de aplicação, pois será este o ponto de conjugação entre a obra e o seu público. É nesta dialéctica entre, por um lado, o poder de inovação da obra e, por outro, a receptividade sedimentada de uma tradição em captá-la, que podemos decifrar o poder de transformação do mundo, íntrinseca à narrativa literária. Independentemente dos constrangimentos linguísticos, simbólicos e temporais da época em que nasceu, encontramos o poder da obra literária em constituir o mundo e os valores da nossa existência. É o caso dos contos de Sophia de Mello Breyner Andersen, em que se procura fazer com que as próprias situações interroguem o leitor, directa ou indirectamente.
A apropriação/distanciação que caracteriza o acto de leitura, traduz-se na mediação que o mundo do texto permite e pela qual o leitor passa a compreender-se melhor a si mesmo, ao encadear o discurso do texto com o seu próprio discurso (Ricoeur 1986: 117). A circularidade hermenêutica é mimética, narra não só uma actividade possível do ser humano, mas também traduz a manifestação da própria forma de pensar o mundo e os outros e de, posteriormente, se pensar a si mesmo. A narração, tal como Ricoeur a concebe, é um dizer analógico que simultaneamente resiste à repetição e propõe a diferença, mas a obra literária só está concluída quando é apropriada pelos seus leitores: “… sem leitor que o acompanhe, não há acto configurante em obra no texto, e sem leitor que se aproprie dele, não há mundo desenrolado diante do texto (Ricoeur 1985: 239). A mimesis I e II carecem da mimesis III, ou seja, da recepção pelo leitor da configuração onde a referência inicial ao mundo está preservada (1983: 86: 87). Uma interrelação entre o acto de ler: acto hermenêutico e o acto de narrar- acto ético por excelência, onde juízos de valor são equacionados, escolhas subtis são feitas, opções de fundo iniciadas; nesta intercessão encontra-se a narrética, que nesta linha sequencial, através de uma hermenêutica da narrativa, poderá coincidir com a mimesis III.
A iniciativa ética e a identidade narrativa não se opõem, completam-se, visto que o mundo que a narração conta é o mundo vivido onde agir é agir com outros; é por isso que para Ricoeur, entre a compreensão narrativa e a compreensão prática há, segundo o filósofo, uma relação de pressupostos e de transformação (ibidem); isto é, como já referimos o ponto em que a hermenêutica é aplicada a uma situação prática. A memória do passado, a atenção do presente e a expectativa do futuro, constituem os pressupostos do acto de contar e de seguir uma história.
Será esta temporalidade entrelaçada que possibilitará ao autor/leitor, seguir uma história, percorrendo uma sucessão de momentos, um caminhar para a sua conclusão. Narrar, para Ricoeur, é uma forma de testemunhar: “se não podemos definir a hermenêutica como a procura de um outro e das suas intenções psicológicas que se dissimulam atrás do texto e se não queremos reduzir a interpretação à desmontagem das estruturas, o que fica para interpretar? Responderei: interpretar é explicitar uma certa forma de estar no mundo (1986: 114), interpretar é decifrar obras, decifrar mundos.
Assim sendo, o futuro e não apenas o presente fica aberto a novas reinterpretações, sempre de carácter hermenêutico-ético.
Bibliografia
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