Muitos e muitas de nós crescemos vendo a típica família de publicidade de margarina: mãe e pai felizes, crianças felizes, tomando um café da manhã farto antes de fazer as atividades diárias. Um ideal de família invadindo as nossas casas através da televisão. Também ouvimos muitas vezes que “a família é o nosso único porto seguro”, que “o mundo pode te dar as costas, mas sua mãe sempre estará ali para te defender”. Também ouvimos que “o sangue fala sempre mais alto”, que nunca vai causar dano.

Mas, infelizmente, esta não é a realidade de todo mundo.

Se bem certas práticas abusivas intrafamiliares sempre existiram (e algumas são até celebradas), a geração Millennial começou a levantar a voz sobre as consequências destas práticas na saúde mental. Muitas delas, situações que ocorreram durante a infância e a adolescência, mas algumas inclusive repercutem ainda na adultez.

Há cada vez mais páginas e grupos em redes sociais falando, por exemplo, sobre mães narcisistas, ou familiares abusivos física ou psicologicamente. Também outras, falando sobre abuso infantil por parte de um pai ou parente. As vítimas finalmente encontraram, nestes espaços, um lugar para se relacionar com pessoas com realidades similares ou até mesmo construir a própria voz.

Os segredos familiares deixaram, então, de ser secretos. As redes sociais se converteram em um terreno propício para escrachos, mas também para procurar ajuda. A violência intrafamiliar deixou de ser glorificada ou normalizada.

Também, nas mesmas redes, temos a cultura do “falar sem saber”. Neste caso, pessoas desconhecidas julgando pessoas por evitar contato com parentes (inclusive pais). Julgando uma situação que sequer conhecem: por que uma pessoa chega a este ponto, de cortar relações com a mãe, o pai, ou um parente?

Evidentemente, cada caso é um caso. Cada situação, inclusive quando parecem iguais, repercute diferente em cada pessoa.

Socialmente falando, temos encarnada uma ideia de família romantizada. “Todas as famílias têm problemas”, dizem alguns. Mas claro, quando a saúde de um de seus membros está em risco já deixa de ser um “problema”. E falo tanto de saúde física quanto de saúde mental.

Estou falando de violência física, psicológica, econômica/patrimonial, sexual, verbal e muitas outras. Como disse, cada caso é um caso.

Muitas vítimas continuam tendo contato com quem as abusou usando alguma das formas citadas. Às vezes por falta de opção, mas normalmente por medo aos julgamentos externos: por exemplo, um filho que corta relações com a mãe é “um radical, um desnaturado, mal-agradecido” e outras tantas coisas ruins. Mas ninguém se pergunta o que essa mãe fez para que o filho precise chegar a esse ponto.

Agora te pergunto: como exigir a uma filha que cuide do pai ou do avô que a abusou sexualmente quando criança só porque agora ele ficou idoso? Como exigir que um filho cuide de uma mãe que o maltratou física, verbal e psicologicamente? Que o tratou como lixo durante toda a vida? Como exigir que uma mãe continue falando com um parente que agrediu fisicamente o seu filho a ponto de deixá-lo hospitalizado? Como exigir que um filho cuide de um pai que o espancou e escorraçou na juventude simplesmente por ser diferente, ou amar diferente?

Estes são alguns exemplos, claro. Como disse, cada caso é um caso. Cada família é um mundo.

Muitos destes maus-tratos repercutem na adultez. Falta de autoconfiança, dificuldade de nutrir relacionamentos saudáveis, dificuldade de dizer não, fobias. Cada trauma se canaliza de uma maneira diferente.

Infelizmente, a maioria das pessoas não pergunta, nem se pergunta, por que alguém precisou cortar relações com familiares; e não falo somente das redes sociais. Muitas delas, inclusive dentro da família, ainda continuam arraigadas à ideia de que isso é uma fase, que a vítima pode voltar atrás. Dão “conselhos” não solicitados e nada empáticos.

Nas páginas de mães ou de famílias narcisistas, podemos ler muitos comentários de pessoas compartilhando um pouco de suas histórias: muitos deles falam, inclusive, do chamado “contato zero”. O contato zero é isso mesmo, o corte total do contato com determinado familiar. Muitas destas pessoas falam de um “renascimento” depois de praticar o contato zero. Outras, entretanto, ainda estão tentando entender a própria realidade: falam de falta de escolha, ou de não estarem prontas para o contato zero. E todas as razões são válidas, já que cada sobrevivente sabe do que passou ou passa cada dia.

Como dizia Malcolm X, “a verdade está do lado dos oprimidos”. Mais construtivo que julgar sem saber é ouvir, acolher, apoiar, entender. É, em grande parte, o que muitas destas pessoas precisam. Até o “não dizer nada" ajuda mais.

Sim, às vezes é necessário podar a árvore genealógica. Manter os vínculos saudáveis são de grande ajuda ao desenvolvimento como pessoa e da sua saúde integral. Se uma pessoa te faz mal, tira a sua paz mental, não importa que seja da família: é hora de usar as tesouras de podar.