“O templo que percorri lembrou-me o tempo (o caminho) que não vivi, mas que gostaria, como passos de Siddharta…” (p. 73) – Eis como se observa nos espelhos do tempo e do espaço António José Borges, cronista, autor de Peito à janela sem coração ao largo (Lisboa, Theya, 2019), evocando esse Príncipe iluminado(r) de outrora vertido em Sammāsambuddha. E eis como vê a sua escrita cronística:
“A crónica cumpre sempre o seu propósito quando exercita a ousadia de misturar géneros ou tipos de escrita. Como passos de Siddharta…, esta centra-se na função catártica do discurso que se serve de premissas de autoestima e de princípios filosóficos e éticos para sondar os limites da arte: de ser e de fazer.” (p. 73)
Dupla reflexão no centro textual da obra, na sua dobra…
Com uma mundivivência intercontinental e um percurso de investigação, ensino e escrita que a refracta, António José Borges, poeta, coordenador do "Dossier Escritor" da revista Letras Com(n)Vida e vice-director da revista Nova Águia, tem desenvolvido actividade cronística em diferentes registos, periódicos e línguas em Portugal e no estrangeiro: Timor – As Rugas da beleza (2006), Peito à janela sem coração ao largo (2019) e Diacrónicas (2020)…
Ora, a crónica, genologicamente epicentrada entre a Literatura e o Jornalismo, bebe em diferentes espaços de escrita e da vida, evocando a sua metamórfica linhagem, desde a historiografia até ao conto ou ao registo mais confessionalista e, mesmo, lírico da ‘espuma dos dias’. Remeto para o que disse sobre a sua conformação genológica na escrita queirosiana (Eça de Queirós, Cronista, Lisboa, Gradiva, 2017), definição que influiu em toda a cronística moderna até aos nossos dias: a geometrização do texto cronístico e a sua estratégia evidenciam-se na linhagem canónica da crónica, como que antecipando as Seis Propostas para o Próximo Milénio, de Italo Calvino. Aqui, surge-nos afectuosamente emoldurada desde o título (Peito à janela sem coração ao largo), em pose à janela, limiar entre interioridade e exterioridade, eu e os outros, olhar e mundo, cartografando, não um além de si, mas um além de si em si.
Volume clivado em ‘Onde Nenhuma Coisa se Perdeu’ (13 textos) e ‘Ecos do Oriente’ (16 textos), dobrado sobre si através de um autor maior do Cânone moderno, Samuel Taylor Coleridge, numa evocação epigráfica de ponto luminoso do nosso imaginário: Kubla Khan; or, A Vision in a Dream: A Fragment (1797-1816), escrito em semi-onírico estado após leitura de Purchas, seus Peregrinos, ou Relações do Mundo e Religiões Observadas em Todas as Idades e Lugares Descobertos, da Criação ao Presente (1613), de Samuel Purchas, beirando a alucinação dessa lendária Xanadu, capital de verão do mongol Kublai Khan, que Marco Polo teria visitado c. de 1275. E terá sido este veneziano que, no seu Livro das Maravilhas, destacou um grande palácio portátil feito de cana ou bambu dourado e envernizado, "suntuosa casa do prazer", segundo Purchas, que Coleridge menciona como "majestosa cúpula de prazeres". Eis o itinerário da imaginação poética na sua deriva desde alegada experiência às suas sucessivas representações na palavra sobre a palavra que informa a escrita… Na origem, portanto, a emoção de Coleridge confessada em carta a John Thelwall (14/10/1797):
I should much wish, like the Indian Vishna, to float about along an infinite ocean cradled in the flower of the Lotos, & wake once in a million years for a few minutes – just to know I was going to sleep a million years more ... I can at times feel strong the beauties, you describe, in themselves, & for themselves – but more frequently all things appear little – all the knowledge, that can be acquired, child's play – the universe itself – what but an immense heap of little things? ... My mind feels as if it ached to behold & know something great – something one & indivisible – and it is only in the faith of this that rocks or waterfalls, mountains or caverns give me the sense of sublimity or majesty.
[Gostaria muito, como o Vishna indiano, de flutuar por um oceano infinito embalado na flor de Lótus, e de despertar uma vez a cada milhão de anos por alguns minutos – apenas para saber que iria dormir mais um milhão de anos... Às vezes posso sentir fortemente as belezas que você descreve, por si mesmas e para si mesmas – mas mais frequentemente tudo parece pequeno – todo o conhecimento que pode ser adquirido, brincadeira de criança – o próprio universo – o que é senão um imenso monte de pequenas coisas?... Minha mente sente como se doesse para contemplar e conhecer algo grandioso – algo uno e indivisível – e é apenas na fé disto que rochas ou cachoeiras, montanhas ou cavernas me dão o sentido de sublimidade ou majestade.]
Emoção embebida de onírico tomada como padrão de avaliação do verbo literário nas epígrafes da 1ª parte da autoria de prosadores e ficcionistas modernos (“Mede-se uma alma pela dimensão dos seus desejos.”, Gustave Flaubert; “A literatura não é outra coisa senão um sonho dirigido”, Jorge Luis Borges). Emoção informada de ética no padrão de avaliação do humano, por sua vez, na epígrafe da 2ª tarde, de Johann Wolfgang von Goethe (“A coragem e a modéstia são as virtudes menos ambíguas, porque são de um tipo que a hipocrisia não pode imitar., p. 61).
Será, pois, o olhar emocionado de António José Borges, confluência de observação, devaneio, memória e ética, a partilhar connosco fragmentos de um real comum, mas insularizado pela perspectiva autoral em viagem (por hipotipose) ou após ela (de memória), oscilante entre tempos:
“Como nunca resisto aos pormenores significantes que a vida nos oferece, a caminho de Paris, e mesmo lá, fruí de pequenas impressões que quis expressar.” (p. 15)
Oscilante, também, entre mundivivências, indecidindo-se nos outros, contemporâneos e de outrora: “Quando subimos a escadaria [da “Opéra” de Paris] assalta-nos (pelo menos a este que escreve) a saudade de um tempo que não vivemos sequer. De facto, o que o ser humano faz de melhor é perpetuar no tempo a solenidade de espaços, ambientes e atmosferas.” (p. 16)
E entre observação e imaginação:
“Olho e leio a indicação de “Amphitheatre – Baignoires.Orchestre” e sonho, tento imaginar Mozart aqui tocando – o pequeno génio no seu esplendor da virtude pianística. Volto costas porque não posso avançar mais. É proibido prosseguir. O melhor mesmo é recuar – recuar no tempo e depois, lá, avançar no espírito do mesmo.” (p. 16)
Concluindo que cada monumento é, também, confluência de tempos, sonhos, utopias e olhares: L´Opéra National de Paris e o homem lembraram-me os outros: nós, que julgamos, e os outros, que foram solenes.” (p. 16)
De Paris, cidade eterna, ao Oriente, de Peso da Régua a Timor, de Trás-os-Montes e Alto Douro à Indonésia e a Hong-Kong, eis lugares do ciclo de circum-navegação em direcção ao oriente, antigo império do sol-nascente, onde se confronta com o “quadro da memória do pôr-do-sol macaense” (p. 49), diante do Lago Sai Vai (p. 50).
E se “a política é a ciência do imprevisível” (p. 27), a escrita de Peito à janela sem coração ao largo não o é menos, começando por um inesperado a que se “resigna” (p. 15) e somando outros, ao sabor dos acasos das viagens e da escuta de diferentes vozes e das evocações de leitura (caso do Diário XV de Miguel Torga sobre a Índia e Bombaim), correspondendo, assim, à afirmação saramaguiana que lhe epigrafa “A razão da cigarra” (uma das crónicas) numa reescrita de Ricardo Reis (“Somos contos contando contos/…/.”): “Somos contos de contos contando contos.” (p. 39).
Pelo meio, ficam as diferenças de filosofias de vida, como a que se cristaliza na afirmativa e ocidental fábula “A Cigarra e a Formiga” oposta à interrogativa e oriental razão “Para quê trabalhar todos os dias?”, justificada com a brevidade da vida. Ficam, também, as pérolas de sabedoria dos mais diversos autores, culturas e épocas, inscritas na escadaria da Central Library de Hong Kong, “uma pequena montanha de conhecimento”, ocupando 3 páginas (pp. 55-57). E muito mais…
A segunda parte conduz-nos de uma desavença do mundo animal (bem humano, bem babélico…) do contoário timorense (“A reunião em Aiassa ”) até à utopia da fraternidade humana, em reencontro do Oriente com o Ocidente que as crónicas aspiram a promover. No livro, o reencontro dos textos perfila esse ideário em pose à janela, no peito do cronista que, no final, saúda fraternamente, ecoando pessoana Mensagem (1936) em Lisboa, cidade princesa, graálica: “Valete frates.” (p. 117). Fórmula de despedida epistolar dirigindo-se a leitor singular, num registo mais intimista, exclusivista do que o evocado, no plural comunitário (“Valete, Fratres”). Mas também fórmula litúrgica de saudação, anunciando livro em preparação…. …como passos de Siddharta…” (p. 73)