No livro I de “A República”, a conversa entre Sócrates e as várias figuras pertencentes ao auditório, dá-se em Pireu, casa de Polemarco. Céfalo, o seu pai, é quem introduz a discussão, ao convidar Sócrates a visitá-lo mais vezes, já que sente cada vez mais o prazer da conversa, prazer este que é igualmente valorizado por Sócrates, ao apreciar falar com pessoas de idade avançada, tendo estas percorrido um caminho à sua frente, que o mesmo questiona acerca da dificuldade. Céfalo responde-lhe com a ideia de que, quando se juntam pessoas da mesma idade, é costume lamentar-se das saudades da juventude como quem ficou privado de grandes bens, vivessem bem e agora já não soubessem sequer o que é viver.
Após algumas questões acerca da juventude, da velhice e da riqueza, menos relevantes para a questão principal da obra, chega-se então à questão da morte e daquilo que conduz a noção humana da aproximação desta. Através da leitura do início da discussão, é possível levantar três hipóteses distintas para a origem do conceito de justiça, que acabam por serem todas elas abordadas, embora provavelmente de forma indirecta.
Considerando cada ser humano em particular, verificamos que o homem é exposto a uma série de factores, ao ter contacto com o meio e com os outros, que fazem com que o mesmo desenvolva atitudes próprias da competição e luta pela sobrevivência. Estas atitudes, associadas ao chamado “instinto humano” dizem respeito essencialmente às questões de egoísmo e vingança. A primeira é essencial para que compreendamos o porquê do homem, apesar de viver em sociedade, ter uma vertente de individualismo e de defesa de si próprio, que o levam muitas vezes a entrar em conflito. Este conflito é normalmente gerado pelo querer tudo só para si ou, em último caso, desejar vingar-se daquele que impediu que os seus desejos e vontades se concretizassem.
É neste ambiente de constante competição que podemos considerar que nasce a ideia de justiça, nos casos particulares, em que o homem, por ser egoísta e individualista, entra em conflito com o seu semelhante e pretende superá-lo. Nessa superação, tomam-se atitudes que muitas vezes não agradam o outro, as tais “injustiças”, que fazem com que o ser humano se sinta desonrado e muitas vezes “injustiçado”, chegando ao ponto de querer se vingar do outro.
Aquilo que cada um considera justo ou não ser feito varia conforme a perspectiva do próprio e sua própria visão, no entanto, com o passar do tempo, foi surgindo a necessidade dessa justiça ser definida e clarificada.
Mas afinal, esta necessidade de falar em justiça, ou da preocupação que o ser humano tem com a mesma, nasce do homem enquanto ser particular, ou da integração deste com os outros, em sociedade? Para Platão, a justiça é a base das três virtudes cardeais da alma, a temperança, a sabedoria e a coragem, já que permite a distribuição de todas as outras. É o controle do pensamento das ideias más, do mundo material/físico, que conduzem os desejos de injustiça, para o filósofo, já que este despreza os prazeres, as riquezas e as honras, e procura a “cidade perfeita”. A justiça surge então como caminho para essa mesma perfeição, da cidade enquanto colectivo, sociedade da tese platónica.
Considero assim, estas três breves hipóteses acerca da origem da necessidade de justiça, sendo esta última nada mais que uma interação entre as duas primeiras (individual e colectivo). Serve a mesma para “provar” que o ser humano, de facto, pensa intrinsecamente em ser justo, apesar da ideia de justiça em si, nascer mais enquanto “gestora” de uma sociedade.
Esta consideração é explicada pela necessidade de evolução de qualquer sociedade, isto é, pela procura de melhoria constante, já que todos sabemos que o ser humano é, por natureza, um ser insatisfeito. Esta melhoria e felicidade não basta somente ser procurada por cada um, é preciso ser “gerida”, para que não entremos constantemente em conflitos, resultantes dos interesses pessoais e egoístas de cada um, como abordei anteriormente. É então que nasce a ideia de justiça, procurando solucionar as desigualdades numa sociedade, através da sua utilidade e positivismo, que mais tarde questionarei.
Apesar de Sócrates questionar, mas afinal, o que é que afinal o justo ganha em ser justo, isto é, aquilo que a justiça dá em troca àquelas que a aplicam, podemos acreditar que, mesmo que aquilo que se recebe seja pouco ou praticamente invisível, dar sem receber nada em troca é das maiores virtudes que o homem digno pode aprender a adquirir.
Não é só por estarmos quase a morrer que pensamos em justiça, já que viver tentando evitar qualquer injustiça para com o nosso semelhante é uma máxima que deve permanecer connosco ao longo de toda a nossa vida. Ser justo simplesmente.
A justiça não serve apenas para solucionar problemas, ter uma vertente útil numa sociedade, em que se procuram somente gerir conflitos. Ser justo é muito mais que isso, é viver tendo a noção da desigualdade existente entre nós e, por essa mesma razão, procurar lutar para que a mesma seja cada vez menos visível. Se esta procura basear-se, de facto, na defesa dos mais fracos, cabe a cada um exercer o seu papel de responsabilidade social, quer no mundo, quer naquele que está mesmo ao nosso lado.