Será possível viver sem padrões e sem regras? Conseguiríamos ter motivação para agir? Essa é uma questão pertinente à medida em que a visão mais aceita e difundida é a de que nos organizamos na vida em função de experiências passadas e de objetivos a alcançar. Em outras palavras, precisaríamos de regras e padrões como referenciais, como indutores de motivação, pois construímos nossas vidas individuais e em sociedade, em função das normas, regras que resumem um compromisso padronizado de comportamento, possibilitando nossa sobrevivência individual e coletiva.
Acontece que essa organização, por mais eficiente que seja no enfrentamento do cotidiano, por mais útil que seja diante dos desafios, cria uma defasagem entre o que ocorre e o que se percebe. É um processo que aliena, que coisifica o humano, tornando-o peça da engrenagem do sistema. Assim despersonalizado, essa avaliação da vida em função de como e com que finalidade as coisas acontecem favorece a ansiedade, o medo, o vazio, impede a vivência do presente, a percepção do que ocorre como o que ocorre. É um contexto de distorção no qual a possibilidade relacional humana é abalada, e o homem passa a buscar saídas em expectativas de resultados úteis, de metas vitoriosas a alcançar, gerando, consequentemente, mais ansiedade e medos.
A cada ano que passa temos mais pessoas que se sentem engessadas pelas expectativas de suas famílias, de seus grupos sociais e sociedade abrangente, desenvolvendo neuroses e psicopatologias graves; vemos um aumento de suicídios, que segundo a OMS teve um crescimento de mais de 80% entre adolescentes na última década (de 2010 a 2019). As psicoterapias têm um papel importante no enfrentamento desses problemas.
Entendo que o processo psicoterapêutico se constitui em um constante questionamento para mudar a atitude, para que a pessoa perceba a vida, perceba o que ocorre como o que ocorre, e não a partir de seus próprios medos, desejos e não aceitações. É libertador entender isso, perceber as próprias limitações e possibilidades; é uma descoberta que neutraliza ansiedade, recupera humanidade, suas possibilidades relacionais. Possibilita a vivência presentificada, que se organiza não em função do passado (experiências anteriores) ou do futuro (expectativas e metas), mas sim da percepção dos acontecimentos enquanto presente.
O que confere autonomia, liberdade enfim, é a aceitação da dinâmica do estar-no-mundo-com-o-outro. Como já afirmei em outra ocasião: “A sociedade, em certo aspecto, é uma vitrine na qual são expostos o que se consegue e o que se pode conseguir, dos adereços às metas; ela se constitui em uma sugestão graciosa para vencer, melhorar, realizar. Tudo pode aplacar o vazio, a dor, o medo, o desejo; basta ter a senha de acesso: dinheiro, poder, influências. As consequências são: não aceitação aplacada, mais necessidade de avaliação, mais não aceitação, mais desumanização. Todo relacionamento gera posicionamentos, geradores de novos relacionamentos e assim indefinidamente... Antítese, impactos psicoterápicos resgatam e podem mudar esse esvaziamento desde que sempre estejam ultrapassando os posicionamentos gerados pelo processo. A psicoterapia reorganiza, abrindo assim perspectivas, reintegrando as possibilidades relacionais ao dia a dia conturbado pela contingência, pelas necessidades, estruturando aceitação da não aceitação responsável pela abolição de limites e de obstáculos. O ser humano está no mundo com possibilidades, necessidades, caminhos, direções, limites, questionamentos e motivações a serem enfrentadas, realizadas ou abandonadas”.
À medida que a aceitação dos próprios limites se realiza, se realiza também a construção de autonomia, única forma de vivenciar liberdade, que é, em um sentido kantiano, a única maneira de ter condições de exercitar o imperativo categórico, responsável por viver em um mundo presentificado, sem padrões e regras, com disponibilidade e aceitação. É a aceitação do que ocorre e do que pode ocorrer enquanto limitações e perspectivas.