Estado e Família são duas instituições de suma importância para a sociedade. Esta, privada, local, com poder moral sobre o indivíduo; aquele, público, (supra)nacional, com poder coercitivo sobre o mesmo indivíduo.

Célula-mater de qualquer país, a família – palavra que se origina do latim famulus, escravo doméstico, e que passou a ser usada para designar pessoas que possuíam algum parentesco – é de fundamental importância para o desenvolvimento de uma sociedade. Por sua vez, o Estado, tal como o conhecemos, é um conceito do século XVII. Como bem ilustra Boeckenfoerde, citado por Bobbio1:

O conceito de 'Estado' não é um conceito universal, mas serve apenas para indicar e descrever uma forma de ordenamento político surgida na Europa a partir do século XIII até os fins do século XVIII ou inícios do XIX, na base de pressupostos e motivos específicos da história europeia e que, após esse período, se estendeu — libertando-se, de certa maneira, das suas condições originais e concretas de nascimento — a todo o mundo civilizado.

A convivência entre Família e Estado (mais uma vez utilizo com maiúscula, pois considero os dois termos grandes estatutos) sempre se deu ao longo dos tempos e de uma forma simbiótica em que aquela interferia neste de forma indireta, mas o mesmo não acontecia quando se invertiam os papéis. Tal era o que acontecia na antiga Esparta, como Marroud explica2:

A lei, exigente, interessa-se pela criança antes mesmo de haver nascido: há, em Esparta, toda uma política de eugenismo. Apenas nascida, a criança deve ser apresentada no Lesqueu, a uma comissão de anciãos: o futuro cidadão só é aceito quando é belo, bem formado e robusto; os raquíticos e disformes são condenados a ser lançados no monturo nas Apótetas.

Como se vê nesse relato, o Estado já se imiscuía nas questões familiares antes mesmo de um filho nascer. E essa intromissão vai se tornar maior com o passar do tempo. Segundo Marroud2:

Até os sete anos, o Estado consente em delegar seus poderes à família: nas ideias gregas, a educação ainda não começou; até os sete anos, trata-se apenas de “criação”; as mulheres de Esparta eram, nisso, tradicionalmente versadas: as amas lacônicas eram bastante procuradas e particularmente apreciadas em Atenas.

Ao atingir sete anos, o jovem espartano é requisitado pelo Estado: até à morte, pertence-lhe inteiramente. A educação propriamente dita vai dos sete anos vinte anos; ela é disposta sob a autoridade direta de um magistrado especial, verdadeiro comissário da educação nacional. A criança é integrada em formações juvenis, cujas categorias hierarquizadas apresentam alguma analogia com as de nosso escotismo e, mais ainda, com a dos movimentos juvenis dos Estados totalitários de tipo fascista, como a Gioventù fascista ou a Hitlerjugend.

Já nessa época começa-se a perceber o problema da relação entre Família e Estado. Porém, esse laço se dá não por meio das leis, mas pela religião, como ocorre entre os judeus. O “Estado” judaico é governado por juízes como Samuel (século VII a.C.) ou mesmo por reis como Davi e Salomão (séculos XI e X a.C.) que seguem as leis ditadas por Deus.

O povo judeu, que busca manter seus costumes e suas leis, mesmo quando escravizado por egípcios, babilônicos ou romanos, vê na lei de Deus um estamento maior que o humano. E esse modus vivendi é replicado até mesmo pelos cristãos, como aponta Lucas em Atos dos Apóstolos, capítulo 5, versículo 29: É preciso obedecer antes a Deus que aos homens.

Essa é a tônica dos judeus durante o Império Romano, durante o qual as leis impostas por Roma se lhes tornavam um pesado fardo. Esse conflito passa a se tornar menos evidente quando Constantino proclama o cristianismo como a religião do Império Romano em 313.

A partir daí, a Igreja Católica, em uma sociedade bastante fragmentada por causa dos feudos, se torna a autoridade máxima, não só no aspecto moral como também na coesão social. Era por meio dos reis que se educava um povo, e cabia à Igreja educar o rei.

Com a Idade Moderna, a Família passa a se tornar uma parte do Estado, pois o poder secular não se mistura mais com o religioso. E o problema, a partir de então, se agrava: os Estados seguem a moral de seus governantes, que nem sempre precisam estar ligados a alguma religião.

Na Idade Contemporânea, em que os sistemas de governo se alternam de tempos em tempos, a incerteza das famílias se torna ainda maior. Como elas podem se formar? Qual seu papel? Até que ponto podem agir na formação de seus filhos? O que é mais importante: a formação legal ou moral?

Todas essas dúvidas permeiam atualmente a mente de diversos pais, uma vez que hoje o Estado, tal como na antiga Esparta, coloca seus filhos em contato com as escolas (e de forma obrigatória a partir dos 4 anos) e busca formá-las, muitas vezes com valores diferentes daqueles da família.

E é nesse ponto que entra o grande dilema: aumentar o poder do Estado e diminuir o papel dos pais na educação de seus filhos ou aumentar o poder da Família e diminuir o papel do Estado, mesmo que as condições socioeconômicas não sejam as melhores?

Escolher um dos lados indica o tipo de educação que se busca para os filhos e o modelo de família mais apreciado.

Se se escolhe o primeiro, busca-se uma formação mais integral, dando oportunidade para que um tirano possa tomar-lhe a liberdade de credo e de educação, devendo curvar-se ao poderoso Estado.

Se se prioriza o segundo, tem-se mais liberdade para se ensinar os valores necessários. E isso implica uma responsabilização maior pelos atos praticados pelos entes familiares, pressupondo, portanto, um ser humano mais livre e autônomo.

Como se percebe, escolher um dos caminhos não é algo simples, ainda que o segundo pareça o mais apetecível, pois se busca uma liberdade maior para a Família. Entretanto, se hoje Família se escreve no plural e com letra minúscula (famílias), não se pode ter a certeza de que qualquer desses caminhos seja natural. É preciso, portanto, repensar essa relação intrínseca e de difícil conciliação, buscando uma relação harmoniosa para que ambas possam sobreviver ao tempo.

Notas

1 Bobbio, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.
2 Marroud, Henri-Irénée. História da Educação na Antiguidade. Campinas: Kírion, 2017.