Na gíria da psicologia o termo usado é “mães tóxicas”. São progenitoras incapazes de amar verdadeiramente os próprios filhos. A ausência de amor é uma patologia que afecta negativamente a vida dos filhos, ao ponto de lhes retirar toda a auto-estima Entre a manipulação da mãe e o sofrimento dos filhos, existe uma teia complexa feita de vergonha, silêncios e omissões.
A cura é possível, mas o processo é lento e demorado. Na maioria dos casos conhecidos só na idade adulta é que as vítimas têm plena consciência da “toxicidade” em que viveram. Foi o que aconteceu com Cristina S. e Francisca. P. (nomes fictícios), duas mulheres, de 45 e 30 anos respectivamente, que só recentemente descobriram que as mães sofriam do Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN, de acordo com o último Manual de Saúde das Doenças Mentais).
Patrícia Costa, psicóloga e psicoterapeuta clínica, dá o exemplo de um elemento tóxico como o “álcool ou o arsénio” para explicar o mecanismo destas relações patológicas. Tudo depende da quantidade e tempo de exposição. “As piores relações são aquelas que parece que “cheiram a perfume”, refere. Os sintomas deste tipo de relação doente não são óbvios, dentro ou fora da família. Por um lado, porque as mães raramente admitem que falham. Sentem-se perfeitas e acham que o mundo gira à volta delas. Por outro, os filhos vivem num doloroso sentimento de culpa, porque gostam naturalmente das progenitoras.
A “toxicidade” nas mães é mais conhecida pelos especialistas em saúde mental, apesar de também existir nos pais. A razão, explica Patrícia Costa, pode ser meramente biológica: a gestação. “Arrisco-me me ia a dizer que a relação (tóxica) começa desde que se inicia o seu desenvolvimento no útero materno, equiparável a um útero emocional”. Quando uma mãe não quer estar grávida, por exemplo, pode transmitir esse sentimento para o bebé: “A autoimagem e autoestima começam (da criança) formar-se muito cedo”, elucida. Se o efeito “tóxico” das mães não “é óbvio a um nível reflexivo e do pensamento” é no entanto, sentido “muito precocemente ao nível emocional dos filhos”, conclui Patrícia Costa. Crescem a pensar que as relações são mesmo assim, mesmo que sofram muito e em silêncio.
Cristina S., com 38 anos, divorciada e mãe de dois filhos (de duas relações diferentes), sentiu desde muito nova que não devia ser merecedora do afecto materno: “Desde os meus 4 anos que a minha mãe dizia que uma prostituta valia mais do que eu. “Dizia-me que eu era pior do que uma cadela”, relata com enorme mágoa. Dizia que ao menos a cadela se ía embora quando ela mandava e eu não”, acrescenta, com mágoa. Toda a sua vida em casa dos pais soma insultos, tareias, abandono e humilhações.
Nem um elogio ou um “obrigada” ouviu da boca da mãe, como reconhecimento do apoio que lhe dava, na lida da casa ou na educação dos irmãos mais novos, recorda. A única coisa positiva que ouvia era quando ela lhe chamava “o braço direito”. “Cuidei do meu irmão mais novo e assumi as responsabilidades dele, sendo eu 8 anos mais velha que ele. Tratava-o se fosse meu um filho”, explica.
Apesar de ter orgulho nessas tarefas de responsabilidade atribuídas pela mãe, não era uma criança feliz. Desejava a aprovação da mãe, que nunca acontecia. Sempre se sentiu menos do que os dois irmãos, que não eram forçados a trabalhos domésticos, como era o seu caso: “sentia-me humilhada ao (vê-los) todos deitados, com cobertores, bem quentinhos, e eu ali no frio, a lavar a loiça e a limpar a cozinha”. Para Alexis Conhanson, psicoterapeuta norte-americana, “não é invulgar que uma mãe narcísica favoreça um filho em detrimento de outro”. Pode ser natural ou estratégico, como forma de ter poder sobre todos: “como colocar uns contra os outros, em competição”, exemplifica. Esta autora de livros de psicologia e colunista de saúde mental na “Psychology Today” e do jornal “New York Times”, considera que é normal e que os filhos acreditem que “o problema está neles e não nos pais”. Foi justamente isto que se passou em ambos os casos relatados. No caso de Cristina S., a sua autoestima era tão baixa que achava que não era sequer digna de amor. Na primeira vez que um homem se apaixonou por ela, não quis acreditar que tal fosse possível: “Mas como é que alguém pode gostar de mim?!”, lembra-se de perguntar a si própria.
“Mãe, não me batas! Eu gosto de ti!”
Apesar de ter a noção que era maltratada desde que sabe que “é gente”, Cristina conta que só muito tarde é que procurou ajuda. Por vergonha, medo, mas também por existir um fiozinho de esperança ou de ser amada. “A minha mãe só me tratava bem quando queria alguma coisa de mim”, relata. Logo a seguir batia-lhe e insultava-a. “Chegou a partir cabos de vassoura a bater-me no corpo”, acrescenta a mesma.
Lembra-se de um dia, em criança, se ter voltado para ela e implorar: “Mãe, não me batas! Eu gosto de ti!”. “Eu quis que ela soubesse que eu a amava”, acrescenta. Porém, “no dia seguinte, ela pôs-se a contar às amigas o que eu tinha dito enquanto me batia, mas (...) de forma trocista, para me ridicularizar”. Dentro da família, era como se existisse um pacto de silêncio: “Como é que o meu pai deixava?! Eu pensava que se, fosse a minha irmã ou o meu irmão, (..) eu ajudava”, conta.
“Nós estamos programados para procurar o amor das nossas mães e aceitar que (algumas mães) são incapazes de amar é extraordinariamente doloroso”, explica a especialista Alexis Cohanson. Mesmo quando há testemunhas na família, elas podem ser omissas. Cristina acredita que o pai gostava dela. Só não percebe ainda, porque é que ele não fazia nada. A própria mãe, que toda a vida teve amantes, dizia-lhe que ele era “um banana”.
Depois de várias tentativas de fuga e de andar a dormir em casa de um tio e da avó, ao mesmo tempo que estudava e trabalhava, as colegas já não aguentavam ouvir as suas queixas de Cristina: “Não suportavam mais o meu estado e marcaram-me uma consulta numa psicóloga”, conta. Foi nessa altura que entendeu que estava doente, e há muito tempo: “descobri que realmente eu tinha depressão, desde os 15 anos pelo menos”, refere.
A mãe bateu-lhe até aos 23 anos e pôs toda a família contra ela: “ela faz uma triangulação entre os filhos, acha-se superior”, diz. Apesar de ser “invejosa e mentirosa (...), a grande maioria das pessoas acredita nela. Noto um tom de desprezo das pessoas que tem uma relação de amizade com ela e (também) de parentes, quando falam comigo”, nota. Agora vive a 7 quilómetros dela e só para poder ir ver os filhos que, segundo lamenta “ficaram do lado dela”.
Competição ou ciúme?
Francisca P., 45 anos é divorciada: “sempre fui instável nos meus relacionamentos”, confessa. “Acho que vivo com uma raiva que ninguém aguenta”, lamenta. E culpa a mãe por isso. Esta produtora, actualmente desempregada, fica nervosa ao falar da mãe: “são tantos os episódios que, para alguém de fora, parece que estou mentir”, começa por dizer. Sabe que tem uma mãe narcisista depois de várias pesquisas na internet. O “mal” não podia estar só nela.
Contudo, diz ter ficado mais calma depois de ter feito “muita psicoterapia e (...) não aguentar mais o ascendente” da mãe. Mesmo a viverem em cidades diferentes, “há sempre uma tensão qualquer, alguma coisa por resolver”, especifica. “Nunca consigo estar em paz com ela ou com a ideia dela”, conta. “Parece a minha pior inimiga, uma madrasta, uma afogadora da minha felicidade”, acrescenta Francisca. Só depois de ter tido uma depressão, a seguir a ter-se divorciado do marido é que se apercebeu que a mãe “sempre foi tóxica”. “Foram anos muito difíceis, de isolamento familiar e depressão”, acrescenta.
“Mas agora também é fácil dizer”, adianta Francisca. Neste momento, já se encontra em processo de afastamento da mãe. Precisou da ajuda de antidepressivos, ansiolíticos e de “muito dinheiro gasto em psiquiatras e psicólogos”. “O que a minha mãe queria era que eu fosse internada num hospital, de preferência de loucos”, conta com alguma raiva.
Diz ter tido “uns períodos e até anos” a sofrer menos. Foram períodos em que se sentia emocionalmente mais amparada pelo então marido. Mas a tensão com a mãe não desapareceu: “Parecia que ela tinha o dom de perceber quando eu estava pior para carregar em cima de mim”. Nos intervalos em que não discutia com a mãe, “voltava a acreditar na reconciliação”, diz. “Ninguém faz ideia do tanto que chorei”, relata. “Era como um amor não correspondido”, compara a mesma. Só que da mãe sabia que não se podia divorciar. Do marido sim. “Acho que a minha mãe contribuía para as nossas discussões”, confessa.
A fase pior foi depois do seu divórcio, há uns anos: “a minha mãe só serviu para eu me sentir pior e mais mal-amada”, revela. Nessa altura, teve de recorrer à ajuda dos pais para as despesas do dia-a-dia. Mas também para “tentar descansar da rotina e das frustrações (...) vida”, como diz. Andava estafada, tanto física como psicologicamente mas “sempre que ia a casa deles, a minha mãe ficava doida que eu o meu pai me desse mais atenção do que a ela. Parecia que tinha ciúmes de mim...”.
“A minha mãe cortava-me a palavra, desvalorizava completamente os meus problemas e estava sempre a implicar comigo até provocar uma discussão”, acrescenta. Francisca acha que foi “posta à prova pela vida” de uma maneira que nunca esperou e “por parte de quem não era suposto”.. Na altura em que estava a recompor-se emocionalmente de “uma separação dolorosa”, ainda tinha a mãe a chamar-lhe “nomes”: “fiteira, mentirosa, aldrabona e interesseira”, enumera. “Ela dizia que era tudo uma farsa, que o meu marido não aguentou o meu feitio, que eu não arranjava trabalho porque ninguém gostava de mim, que não tinha amigos”, explica Francisca. “Sempre que estava com ela, ficava pior. Só queria fugir, desaparecer da face da terra”, recorda com mágoa. “Parecia que só ficava contente quando conseguia que o meu pai tomasse o partido dela”, recorda, como se ainda estivesse a querer compreender tanta hostilidade por parte da própria mãe.
“Intoxicar” para reinar
O modus operandi de uma mãe tóxica corresponde a um padrão de comportamento: “Em vez do filho ou da filha se sentir seguro quem dita o rumo é a incerteza da resposta afectiva”, explica a psicóloga clínica Patrícia Costa. Os vários elementos da família são manipulados e há uma total subversão de papéis e sentimentos. “A competição substitui a cooperação, criatividade dá lugar à repetição, a admiração é irmã da inveja, a implicação é substituída pelo desinvestimento e desinteresse”, precisa a psicóloga Patrícia Santos, que já teve muitos casos como estes à frente.
Francisca confirma muitos desses padrões. Tem uma irmã mais velha, com quem sempre foi comparada. “Ela é a certinha, a grande ‘bênção dos Céus”, ironiza. “Eu até gosto dela”, conta, apesar de se verem pouco. Já nem sabe se não se dá por irmã por “diferença de feitios” se por terem sido ambas “envenenadas” pela mãe, durante a infância. “Acho que a nossa mãe nos dividiu a vida toda e agora é tarde demais”, conclui a Francisca . O pai, com quem diz ter tido sempre uma boa relação, parecia que entrava no jogo da mãe: “eu penso que ele também deve ser manipulado. Não sei se sou eu a querer desculpá-lo, ou se ele tem noção, e não age com medo do que ela lhe possa fazer”, adianta. Também como no caso de Cristina, o papel do pai é o de uma figura querida, mas omissa.
Sempre que recebia um elogio do pai por algum sucesso profissional ou por estar mais bem arranjada, a mãe “parecia que ficava a ruminar contra ela”, explica. “Eu já sabia que mais tarde ou mais cedo ela ia encontrar uma maneira rocambolesca de desviar a atenção dele”, lembra. Tanto o psiquiatra como o psicoterapeuta lhe disseram para se afastar da mãe, pois ela era “incapaz de amar”. “Eu sofria por dois motivos: pelo que ela me dizia e fazia e depois por ir tão abaixo... Sentia-me a ficar doida e ela ainda ajudava à festa”, conta. “O que mais me custa”, confessa: “é ter crescido sempre a levar da minha mãe e de me sentir a culpada da infelicidade dela”. “Só aos 40 é que sei isto?!”, questiona-se. “Ela sempre me mandou para baixo, sempre!”, reforça, quase como se ainda estivesse a convencer-se disso.
Sair deste ciclo, ou “fazer o detox” de uma mãe narcisista depende de muitas coisas. Patrícia Costa volta a recorrer ao exemplo do elemento tóxico: “Depende se se trata te álcool ou de arsénico”, refere. “Há diversidade de factores em interação”, adianta. Entre eles, o contributo que a própria vítima dá a si própria, ou seja, a vontade de se autonomizar. Esse esforço individual “não é fácil de apurar”, nota. “Pode funcionar como protector ou como agravante (da relação)” explica Patrícia Costa.
Sair do raio de acção da pessoa pode “diluir” o efeito tóxico. Mas os recursos exteriores também são importantes: “Quanto mais rica e diversa for a vivência emocional e relacional” da vítima, mais possibilidade existe de esta melhorar a sua saúde mental ou mesmo curar-se, defende Patrícia Costa. Isso pode acontecer através do trabalho, do grupo de amigos ou de um relacionamento amoroso. O processo pode ser mais ou menos lento, experienciado com mais ou menos dor. Se é o anti-amor que intoxica será também pelo amor que a ‘reabilitação’ se dará”, conclui.