Camilo Castelo Branco inicia a publicação de Vinte Horas de Liteira em julho de 1864, no Comércio do Porto, sob a forma de folhetim. Posteriormente publicada em livro, esta é uma das suas obras mais modernas, não só pela complexidade narrativa que nos apresenta, como pelo pendor autorreflexivo do discurso literário.
Conforme o próprio título sugere, é a partir de uma viagem – desde a aldeia da Ovelhinha até à cidade do Porto – que se articulam as múltiplas narrativas de Vinte Horas de Liteira, assentes num extenso e cómico diálogo entre dois viajantes: Camilo, na qualidade de narrador-autor, e António Joaquim, seu companheiro de jornada, descrito como “uma pessoa de quarenta anos, proprietário, casado, e residente numa de suas quintas do Minho, nas cercanias de Braga”.
Ora, ainda antes de nos debruçarmos sobre a leitura desta obra tão vanguardista quanto digna de gargalhada, importa lembrar que a ânsia da viagem é um sentimento persistente no universo camiliano. Desde logo, porque Camilo Castelo Branco foi, ele próprio, um eterno viajante, como confessou, por exemplo, na correspondência dirigida a António Feliciano de Castilho: “Mudo de terra para terra, precedido sempre do meu tédio que lá me vai esperar”. Percorrendo aldeias e vilas, buscando o mar com a mesma avidez com que se estabelecia na capital, o romancista “não procurava nada, senão a velha esperança da procura”, como tão bem notou Hélia Correia no seu prefácio a Vinte Horas de Liteira.
Para Camilo, a viagem é um modo de acalmar a sede de experiências únicas – uma emoção marcadamente romântica, instigada pela inquietação constante e pela busca de um ideal inatingível. Não será por isso de admirar que, na sua obra, a partilha de um espaço e de um tempo através de um meio de transporte sirva, não raro, de pretexto e inspiração ao exercício literário, na medida em que configura uma espécie privilegiada de comunhão. De resto, o paralelismo entre a ação física da deslocação e a possibilidade de viajar através do ato de contar histórias é uma leitura já postulada por Annabela Rita, segundo a qual, em Vinte Horas de Liteira, a viagem aparece como alicerce da narrativa.
Ao longo deste percurso do Marão até ao Porto, apenas uma história é atribuída ao narrador-autor, sendo as demais relatadas por António Joaquim, com base em episódios da sua vasta experiência de vida. Aos relatos expostos pelo companheiro de viagem, os quais frequentemente nos remetem para a literatura oral e a sabedoria popular, Camilo responde com comentários que evidenciam o seu labor literário, dando azo a um debate entre o valor da imaginação, o saber prático da vida e o ofício da escrita. Com efeito, logo no primeiro capítulo, António Joaquim lança-se à provocação:
“Olha que a natureza fez homens, não fez literatos. O Criador, quando expulsou Adão do paraíso, teve a piedade de lhe não dizer: ‘Serás escritor!’. O que lhe disse foi: ‘Viverás trabalhando até suar’. Considera, amigo, que é necessário suar para viver. E o escritor não sua: logo, morrerá anazado qual te vejo, pobre homem! Saíste das prescrições da natureza; torna sobre ti, e corrige o vício”.
Nesta obra, o “vício” da escrita é equacionado sob os binómios realidade-ficção, verdade-mentira, ou, se quisermos, através da oposição homens-literatos, para melhor nos servirmos das palavras de António Joaquim. Aliás, o seu estilo eloquente convoca uma questão que remonta a tempos imemoriais: a relação entre o conhecimento empírico e o saber teórico, isto é, entre os verdadeiros “homens” e os designados “literatos”, entre os que vivem “trabalhando até suar” e os que saem “das prescrições da natureza”. O interlocutor de Camilo chega mesmo a criticar o seu estilo sentencioso e a coexistência de “virtudes impossíveis” e “perversidades incombináveis” na literatura, recebendo do narrador uma lição de verosimilhança literária: “Se a vida é esse misto, que te repugna, como queres tu que se escreva, António Joaquim?”.
É neste tom coloquial e concomitantemente erudito, ao qual não é alheia a partilha de um trajeto, que sucedem os diálogos entre os dois amigos, recheados de passagens cómicas que incitam a gargalhada do leitor. A isso se prestam também o tom e o estilo da própria linguagem, servindo-se o narrador de estratégias retóricas para a interpelação do narratário, bem como para atestar a veracidade dos relatos apresentados, consolidando, assim, a sua autoridade. De igual modo, António Joaquim explora as virtudes da sabedoria popular e da literatura oral, a fim de estabelecer essa proximidade com o destinatário. E é tão profundamente camiliana esta cumplicidade com o leitor, que Hélia Correia chega mesmo a referir-se-lhe como “uma quase ternura, um abraço, um aceno, um trocar de segredos”.
Não será de somenos importância sublinhar que os interlocutores, Camilo e António Joaquim, revelam ter a noção de que atravessam um momento de transição sociocultural, motivo pelo qual esta obra se constitui também como uma viagem no tempo. Veja-se a introdução, ao longo da qual é levada a cabo a defesa da liteira – o verdadeiro símbolo de um mundo antigo ameaçado pelo progresso: “O progresso é uma voragem!”. Todavia, o narrador-autor é, em simultâneo, conservador e progressista, pelo que não se limita a criticar os tempos vindouros. Numa atitude autorreflexiva, censura a literatura do seu tempo, tal como a sua própria obra, num discurso metaliterário e vanguardista, comprovando, uma vez mais, o imensurável valor do legado camiliano.
Pois bem, sem prejuízo de ter como mote uma viagem, este conjunto de narrativas distancia-se da conceção de um itinerário material, porquanto não se verifica a descrição daquilo que é observável. Em boa verdade, Vinte Horas de Liteira extravasa esse conceito de viagem física, desafiando a tradicional noção de livro de viagens (género tão popular naquele tempo), para se constituir enquanto viagem simbólica e literária. Porque há, de facto, uma afinidade entre o trajeto da viagem e o ato diegético, ambos compostos por partidas, chegadas, desvios, avanços e recuos. Viajar, tal como mergulhar numa história – seja enquanto narrador ou narratário –, é sempre um enriquecimento, a vivência de um espaço-tempo múltiplo, complexo e, por isso mesmo, privilegiado.
Não se afastando por completo de uma noção de deslocação física, Vinte Horas de Liteira é um exemplo irrepreensível do génio literário de Camilo Castelo Branco, uma das personalidades mais cativantes, intrincadas e fervorosas das letras portuguesas, capaz de conciliar aspetos aparentemente antagónicos numa obra que, ainda hoje, irradia modernidade. Afinal, este é o escritor que, com assinalável mestria, troça de si próprio e dos que o rodeiam, num misto de gargalhada e de lamento: “Ó meu amigo, o máximo favor que um português pode receber do céu é endoidecer, na véspera de fazer-se escritor público!”.