Em 1979, Gianfranco Baruchello publicou o livro L'Altra casa (A outra casa) para as Éditions Galilée em Paris. Trata-se de uma obra que orbita à volta de um conjunto de objetos e de uma série de recortes, notas e sobretudo fotocópias de casas, quartos, casas de banho, portas e tapetes. Perante estes vestígios propõe emancipar a ideia de que a vida está intimamente ligada à memória. Reflexão que se move entre o espaço interno, da memória e dos sonhos, e o espaço externo, entrelaçando aspectos da história, da política e do tempo vivido. O artista multidisciplinar, escritor e cineasta considerado pelo seu mentor Marcel Duchamp como o seu único herdeiro, convida com base na recolha destes objetos, a refletir sobre o movimento e ocupação. Assente em sinais de um passado, coloca em perspetiva a consciência do tempo alicerçado sobre a transcendente fisiologia da memória.
Este é o ponto de partida para uma reflexão que propõe olhar a memória perante uma simbiótica coexistência com o tempo, que em potência se consolida sobre a manifestação de vida. Por inerência da evolução, geram-se sobre a sua diferida condição, um conjunto de dilemas que a instruem e ferem, passando de matriz da vida, a “ferramenta” enquanto principio de interpretação.
Recordar estabelece testemunhos e sistemas de arquivo até atingir a explicação, em termos de finalidade ou de causalidade. Já não se trata apenas da memória que compreende um passado e presente, como de um futuro em relação a uma consciência em movimento, capaz de desenvolver sentidos que se apuram a partir da hermenêutica. Não se trata de procura pela verdade, mas provavelmente da vitalidade em poder agir conscientemente, transcendendo limitações físicas e históricas.
A propósito da história, enquanto ciência e advogada da memória, torna-se perante estas considerações, “instrumento” responsável por ampliar os horizontes da reminiscência, uma vez que as recordações têm um alcance determinado. Isto é, não somos capazes de arquivar, sem o apoio da historiografia, acontecimentos que não vivemos ou episódios do quotidiano que a nossa experiência empírica não alcança. Nesse entender e face a uma construção linear da memória, a ciência opera ao nível da explicação a ameaça do esquecimento, a reminiscência, a anamnesis aristotélica que em última instância, procura providenciar uma narrativa que ligue os acontecimentos ou sensações do passado ao presente. Posto isto, a recordação é também política, contornada por valores individuais e coletivos que despertam uma moral instruída pela seletividade e, somada posteriormente às vivências afetivas, científicas, e culturais.
No plano afetivo e emocional, consubstancia-se uma dinâmica que compreende a memória enquanto ponte para uma consciência intemporal, traçando uma linha que é capaz de observar o passado para compreender o futuro.
Somos capazes de sentir a partir de um conjunto de objetos, (efeitos de um arquivo) vestígios de uma emoção que para além de se movimentar entre o espaço interno e externo, desloca-se também no tempo.
Conseguimos recuperar sensações, por via dessa dinâmica, gerada entre passado e presente, instrumentalizada posteriormente pelo “eu”/consciência e, o seu contexto psicológico. Segundo Sartre os seres humanos são agentes conscientes que agem sobre si e, ao mesmo tempo sobre o mundo, contrapondo, a ideia de que o passado determina o nosso futuro. Uma vez que não somos objetos e por isso, não padecemos de consciências estanques, tornamo-nos capazes de ser livres para tomar decisões com base nas escolhas. Temos então uma infinidade de possibilidades disponíveis para nós. Nesse sentido a memória, alicerçada sobre o conceito da liberdade radical, consubstancia o dinamismo vital da consciência, e por sua vez, a forma como agimos em relação aos objetos e acontecimentos, indissociáveis de uma memória afetiva.
Somos capazes de identificar problemas, soluções e, tomar decisões a partir de recortes, notas, fotografias, etc., apoiado-nos no uso de uma memória útil e transcendente.
Debruçamo-nos sobre a sua condição tendo em conta as distintas idiossincrasias que nos são empregues por acaso e não por recomendação. Um espaço “nosso” com dados que vamos recolhendo a partir de uma atenta analogia. Ao percorrer a cidade, a casa ou qualquer espaço que nos desperte a força da vitalidade, apuram-se sensações responsáveis por estabelecer novos métodos de recolha de informação desdobrando-se, numa interessante análise sobre a antropologia do ser contemporâneo que, a partir da anamsesis afetiva, desenvolve derivações mentais que, em última instância são capazes de interrogar sobre a presença no mundo.
Os situacionistas, incluindo as observações de Georges Precec retratadas no livro “Tentative d’épuisement d’un lieu parisien”, perecem encontrar na mundividência das ruas, cafés, conversas, barulhos, sinais que para além de manifestarem a existência de vida, exprimem também ressonâncias sobre uma psicofisiologia ativa, indicossiável da memória, uma vez que as suas derivações são registadas e comentadas. Expressões, pensamentos, ações, princípios e valores que, depois de manifestadas através das correntes artísticas e literárias, se encontram em trânsito no tempo. Gestos que para além de se traduzir num processo de recolha de informação, ampliam os significados da linearidade cartográfica, a partir da sua desconstrução afetiva e psicológica.
Encontramos sobre estas complexas construções mentais o grau de presença, ausência e anterioridade de uma memória transcendente. Um espaço mental que usamos para mapear, capaz de uma compreensão multidisciplinar. Por outro lado, igualmente capaz de tecer identidades na margem do esquecimento, operando através da obliteração a potencialmente nociva manipulação e consequente especulação, que em última instância fere a memória e a contingente escolha da verdade. Neste contexto a arte serve de filtro para medir ambiguidades, tratando a psicologia dos acontecimentos. Amplia a narrativa necessariamente seletiva, tornando o observador numa figura responsável pela configuração das subsequentes variações. Cabe-nos refletir sobre a memória e atuar através das suas transcendências, a intemporal consciência de nós próprios.