Saio de casa às 8 da manhã (enganos destes ocorrem, excepcionalmente). Um velho senhor passa por mim, agarrado ao pulso:
— “Merda, merda...” e apressa o passo, nunca ao ponto de correr, mas também sem nunca se resignar ao lento caminhar. Este coelho branco levava as horas ao pulso, ao invés de ter que as tirar do bolso como se fazia antigamente. Enfim, modernices...
Por falar em coelho branco, já pararam para ponderar para onde ia o coelho que, em “Alice no País das Maravilhas”, aparentava sufocado pela urgência? Pois é, o livro nunca nos desvenda esse mistério! E não é, em certa medida, exatamente isso que vamos deixando que nos aconteça ao longo do tempo?
Aqui estamos nós, o mundo precipitando-se sobre si mesmo. Inventámos relógios digitais com o simples intuito de não podermos perder uns segundos a fazer a tabuada do cinco e desvendar o sentido dos ponteiros. É este o estado da correria desenfreada em que nos encontramos! O avanço tecnológico e industrial convence-nos que não podemos parar.
E diz alguém desse lado: “mas não é para menos! Olha tanta coisa para fazer, Leandro!” E estás corretíssimo/a. A única salvaguarda que acho pertinente fazer é: uma das coisas que temos que fazer, (provavelmente) a mais importante, é termos tempo para nós.
No entanto... Com que expressões é que eles nos encheram a cabeça desde crianças? “Tempo é dinheiro” e depois lá vem o capitalismo, de peito feito, tentar aproveitar-se do nosso. “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje” e, afinal, lá deixámos o capitalismo ficar com ele. A prostituição está diferente nos dias de hoje.
(Sim, os parágrafos anteriores foram bem agressivos. Mas como podem eles não ser depois de chegarem até ao ponto de nos tirarem o intervalo dos cinemas? - Até proponho um abaixo-assinado. Mas não me chamem para manifestações. Não tenho tempo).
Em tom (só ligeiramente) mais sério, preocupa-me a maneira como isto nos consome a nível global e contagia toda a gente e, tenho a convicta sensação de que a saúde mental pagará o tempo que vendemos.
E, no meio desta pérfida troca comercial, temos um resultado visível. Vemos, em todo o mundo, este vago sentimento de urgência: damos por nós a correr para fazer as coisas, nem sabemos bem porquê. Aliás, muitas das vezes, nem sabemos bem que coisas é que temos que fazer. Padeço desse problema, e acredito que não serei o único. É como se todos fossemos uns branquinhos herbívoros fofos, preocupados em correr, também sem razão aparente...
No fundo, somos todos (sei que vocês conhecem alguém assim) aquela família chata que vai de férias e tenta visitar duzentos e quarenta e cinco sítios na semana que têm para descansar. Fazem planos com mapas, marcam horas, visitas a museus, passeios pela praia, sabe-se lá mais o quê...
Inevitavelmente, quando toda a correria acaba, voltamos para o trabalho mais cansados do que de lá viemos, e vamos já fazendo contas para sabermos quanto tempo falta para que possamos desperdiçá-lo novamente naquelas férias-maratona.
Já ia eu tão perdido nesta correria de reflexão, que nem me apercebi do caminho que fiz, das pessoas com quem falei, do cigarro que fumei...
Agora, decido, este tempo é para mim: estou sentado numa esplanada, tenho a vaga sensação de já ter pedido o café e aberto o livro.
Respiro fundo. Recordo, vagamente, a imagem do homem que vi a correr de casa de manhã. Onde estará ele agora?
O meu livro está aberto num capítulo sobre contos de fadas e lendas. Sabem, não me recordo de nunca ler um conto de fadas que comece com “Era uma vez um príncipe muito apressado”, ou “uma rainha atrasada para a reunião” e, aproveitando para refletir sobre isso, acho que há uma razão muito simples para isso: os contos de fadas ainda existem só para nos lembrar que é de suma importância, antes de procurarmos o nosso tempo, procurarmos o nosso lugar.
Quantas vezes correm para um trabalho que não é o “vosso”? Quantas vezes correm para fugir de vocês mesmos? Ninguém tem muitas coisas para fazer. Na verdade, faz-nos falta é ter mais coisas para ser, ou mais sítios em que estar.
De novo me relembro do senhor. O pobre do velho, da maneira que mancou para o carro ainda agarrado ao relógio, já tinha idade para estar na reforma. E, com o descanso que o trabalhar durante décadas lhe podia proporcionar, ele decidiu forçar o corpo a correr, fugindo do ócio.
Uma outra recordação me ocorre: muitas vezes, demasiadas até, tive alunos a perguntarem-me as horas, visando já os quinze minutos de intervalo. Nada de novo.
Quando a situação era essa, no entanto, eu sempre achei (possivelmente mal) que a abordagem mais pedagógica era responder: “o que é que isso interessa? O tempo é só uma conceção humana.”
Que todos me perdoem esta parvoíce, mas há uma razão simples por trás dela. Um medo inconsciente que agora compreendo:
Eu não quero que, um dia, algum escritor manhoso se sente a beber uma cerveja à frente do pc e a escrever sobre algum deles, só porque os viu, já velhos, a correr agarrados ao relógio. Muito menos quero que essa pessoa se refira a algum deles, sendo forçada a terminar o texto com:
E, a seu tempo, na campa lá lhe escreveram: afinal, sempre chegou a tempo.