A sala está cheia. A sala é nossa e o mundo também. Quem me impede de sentir assim? São os tempos e as mudanças.

A sala está repleta de mulheres. No banco dos réus, uma grávida de olhos macerados, vermelhos do chorar constante, olha, de olhar perdido, a parede que se ergue atrás da cabeça do juiz. O que é que se julga nesta sala? A outra ré fixa, também de olhar perdido, a máquina do escrivão donde saem os sons monótonos e sempre iguais - tac-tac-tac - da redação dos autos do crime cometido. O que é que se julga nesta sala? Não o vento que me desmancha o cabelo e me faz arrepiar ligeiramente apesar do preto da toga que me cobre. Nem os cabelos ralos e cinzentos do causídico que escrevinha à pressa o peço justiça que lhe encerrará mais este dossiê, enquanto se dizem os costumes. Nem as mulheres também. Penso que não, embora a dúvida me permaneça, insidiosa e irritante.

O ventre daquela mulher, pejado e cansado, a querer dar à luz, pede que se faça justiça. Clamorosamente. E ela só tem dezanove anos apesar de aparentar outros tantos. Se por ironia o bebé nascesse no ato? Deveria haver uma lei a proibir o julgamento de grávidas às vésperas da parição. Afinal o que é que se julga nesta sala? Um sussurro apenas percetível narra a história insólita do feto encontrado morto na lata lixo e da barriga que estranhamente parara de crescer. Não, ouvi mal. A história que paira no ar é a da moça que matou o padrasto que lhe tirara a virgindade e há anos abusava dela.

Em Fonte d´ Inês o Sul pé di gancho, pai do filho para nascer e de cem outros já nascidos, aguarda, sem emoção, mais este ato de criação. Amanhã irá à pesca e, quem sabe, o vento soprará forte virando-lhe a embarcação. Cansado, faltar-lhe-á forças para chegar ao ilhéu dos pássaros. Nada lhe restará senão morrer afogado nas ondas do oceano que o gerou. E os filhos sem pai ficarão órfãos de um pai, assustadora e aflitivamente morto nas águas do mar quando os braços lassos, a roupa pesada e a fome crónica não lhe deixaram alcançar o ilhéu dos pássaros como fizeram os seus outros dois companheiros. O que se julga nesta sala? Verifico se são todas recetadoras, por compra ou dádiva. Declarantes algumas. Quem as iria julgar? Eu não, certamente.

Esta por exemplo com os documentos prontos para emigrar para Itália agora entrada nos nove meses, no banco dos réus, abandonada pelo pai do filho, eternamente amparada pela mãe. Os papéis a caducarem, e ela na miséria. A outra felizmente já não está grávida. Mais forte embora de olhar perdido e ar amachucado. Os olhos dela já não podem chorar mais. Em pouco tempo a sala estará alagada em pranto. Já as secretárias boiam, a máquina de escrever boia, os oficiais de diligências boiam. Há togas negras boiando, e o relógio da parede recusa-se a bater mais horas. Ninguém quer bater. Nem os relógios. Cansaram-se todos. Da assistência uma moça engraçada, bonita mesmo, olha-me de olhar atónito. Ela pensa em mim, e eu nela. Pensamos que são tantas as grávidas que até a miúda de 14 anos de sapatilhas também o está.

Afinal… quem se julga nesta sala?

Morri-me
Ainda não vivi
Mas toda eu pede socorro
Toda eu sou uma chaga só
Toda eu sou só terror

Mãos tenebrosas
Interromperam minha infância
Mataram minha inocência
E lançaram-me à ignomínia

Por vil concupiscência
Por criminosa lascívia
Roubaram-me o futuro
E morri-me em mim

Mas um dia regressarei
De pé, de cócoras ou rastejando
E armada de ódio e sofrimento
Extinguirei os meus algozes