Dentro do universo da literatura, os autores russos ocupam um lugar especial para mim. Tanto que aos 18 anos, na universidade, resolvi me formar em um curso um pouco diferente: Estudos Russos; a história, as artes, o teatro, a geografia e - como meu foco - as escritas desse povo tão distinto. São muitos os motivos que tornam essa turma de escritores tão especial, mas, um dos pontos mais curiosos é que, frequentemente, suas vidas pessoais eram mais insanas do que suas ficções.
Pushkin, humilhado pelo Czar e seus companheiros nobres, morreu em um duelo enquanto lutava pela honra da mulher que amava; Gogol, que ao certo sofria de distúrbios mentais, sentia tanta angústia de falar em público que às vezes envolvia seu rosto em gaze, e fingia estar se recuperando de um ferimento que o impossibilitava de falar. As histórias são múltiplas - uma mais cativante do que a outra. Mas um autor que sempre se destacou para mim é o grande Fyodor Dostoievski. Vou contar um pouco sobre ele, muito resumidamente, e porque penso tanto sobre sua existência turbulenta.
Muitos eventos o marcaram e, sem dúvidas, influenciaram seu gênio. Ele sofria de epilepsia, e dizia que se sentia perto da morte - e da paz - sempre que sofria um ataque. Seu pai, Mikhail, era tão cruel, que às vezes o jovem Dostoiévski desmaiava em sua presença; eventualmente Mikhail foi assassinado na frente dos filhos, por servos cansados de sua maldade. Quando jovem, Fyodor foi condenado por “atividades socialistas” e preso por 10 anos na Sibéria; não bastasse isso, foi vítima de uma execução de mentira ordenada pelo Czar - os soldados o levaram a sua morte, e esperaram até o último momento para revelar que Dostoiévski havia de fato sido perdoado - e que não esquecesse dessa misericórdia.
Foi jornalista ao lado de seu irmão, foi pai e marido. Era viciado em apostas e quase perdeu o direito autoral de todas suas obras. Sua segunda esposa, Ana, foi uma figura importantíssima em sua vida; o ajudou a redigir seus livros e cumprir com seus prazos. Era amoroso com ela e com seus futuros filhos, mas era falho. Certa vez, perdeu uma aposta, e na falta de dinheiro, teve que entregar o único vestido de Ana, que ficou em casa por meses, até que o marido pudesse comprar outras vestimentas.
Era anti-semita, como todos seus contemporâneos, mas mostrava uma compreensão sensível -e talvez até uma preferência- as crenças do Judaísmo. Era machista, também como seus contemporâneos, mas escreveu sobre mulheres com uma admiração inquieta que quebra o coração de qualquer leitor atento. Era ganancioso, perturbado e preocupado. Não era ateu, mas não conseguia aceitar um Deus que matava crianças. Não era socialista, mas não achava justa a condição de vida das massas. Estava sempre quebrado; dizem que uma vez pegou dinheiro emprestado de Turgenev, e, nunca tendo condições de o devolver, desenvolveu um ódio incompreensível escritor. Era fumante, por vezes sério, e sempre melancólico, e acreditava em uma forma mais democrática de se viver. Sofreu o luto de seus filhos, e nunca desistiu da ideia de criar um personagem que incorporasse um “homem perfeito”. Falhou todas as vezes.
Foi um homem extremamente complicado, complexo, que nos trouxe algumas das histórias mais ricas já criadas. E é sobre isso que escrevo hoje: afinal, à troco de ele fez isso? Criatividade, expressão artística, rebelião? Claro - mas, igualmente, por dinheiro. A questão é justamente essa: Dostoevsky era escritor por profissão. Pode parecer óbvio mas, em seu contexto, não é. Diferentemente de seus antecessores e contemporâneos, Dostoevsky não pertencia à nobreza; dinheiro não lhe era garantido. Ele escrevia para comprar pão.
Turgenev, Tolstoy, Lermontov, Pushkin - eram todos membros da aristocracia (embora o último já não tivesse renda); escreviam por interesse, por amor, mas não porque dependiam disso. Isso não invalida seu talento - só não é um ponto com que muitos de nós conseguimos nos relacionar. Contas, geladeira vazia, correria contra o tempo - essas são ideias atemporais. E era o caso do nosso protagonista. Para Dostoevsky, o interesse do público pelas suas obras não era somente um elogio - era necessário. Muitas vezes abria o jornal e lia sobre crimes como forma de se inspirar (Crime e Castigo, Uma Criatura Dócil).
Entra então um ponto interessante: como ser criativo por obrigação? Muitos idealizam que a criatividade é um talento nativo, e não uma habilidade na qual se trabalha; que artistas desenvolvem suas ideias a partir de longas caminhadas na praia, pausas para cigarros e uma vida necessariamente bohemia; sem deadlines, sem pressão, sem ordens. Pensar assim é de fato muito mais romântico. Gosto de pensar que meus álbuns favoritos foram escritos por músicos tão acelerados de amor e raiva que escreveram hinos inteiros em uma noite, pois transportavam tanto de inspiração que o processo todo foi um fervor espontâneo. Provavelmente não é o caso. Galãs do rock também tem que responder a produtores, têm que entregar suas faixas no prazo, e devem às vezes ficar horas olhando para parede pensando sobre o que rima com “mexerica”. Também gosto de pensar sobre Dostoevsky como um rebelde barbudo que não obedecia ao relógio e criava suas próprias regras - mas sei que não era o caso. Sei que quebrou sua cabeça para escrever, e que passou muitas noites em branco para que seus contos fossem publicados.
Da mesma forma, cá estou eu, às duas e meia da manhã de uma quarta-feira, tentando terminar um projeto que já deveria ter concluído há alguns dias. Como ser criativa em plena madrugada, quando o café de casa já acabou, e sei que o alarme soa daqui a 4 horas em ponto? Nesses momentos, quando o thesaurus já não funciona como fonte de inspiração, gosto de pensar sobre meu velho amigo, e pedir conselhos. Peço que me mande algumas palavras bonitas, ideias diferentes, ou, se não for pedir demais, me conte sobre os segredos da vida e o que acontece depois dela. Nunca obtive respostas, mas gosto dos nossos papos, e sigo criando-os na minha cabeça. Me sinto um pouco menos aflita pensando nos meus ídolos, presos em suas escrivaninhas, querendo um chá de camomila e um travesseiro, esperando um raio de inspiração dos céus.
Não escolhi uma carreira que me permita depender da frieza dos números, ou de fatos concretos. Eles parecem ser mais simples e estáveis, e também bem menos interessantes. Mas nessas horas - ah, como queria poder passar a responsabilidade para a indiferença da matemática, e deixar que a lógica assumisse. Não - sigo fazendo musculação mental, raciocinando em letras e rimas, e pensando nessa prática milenar que é ser criativa por profissão. Me diga, Fyodor, em algum ponto fica mais fácil?
Como sempre, aguardo resposta.