Existe, uma crença amplamente difundida, de que a Idade Média representou um período de retrocesso no que diz respeito a produção de conhecimento. Alguns autores até mesmo chamam tal período de Idade das Trevas, a fim de estabelecer um contraste entre o período clássico, onde brilhou o racionalismo, em especial Grécia, e o período conhecido como Humanismo, em que houve uma retomada do conhecimento da antiguidade clássica e a produção de novos conhecimentos provenientes da prática científica.
No entanto, quanto mais documentos são obtidos por meio de pesquisas historiográficas, mais evidente fica de como esse conceito é equivocado. Em vários campos do conhecimento humano, em especial no campo das ciências físicas, foram realizados inúmeros progressos, estabelecendo as bases para que os cientistas Renascentistas realizassem as suas descobertas.
Para ilustrar o que afirmamos acima, vamos fazer um breve tour pelas ideias acerca do movimento de corpos. Os gregos foram os primeiros a tentar fornecer uma explicação racional para o movimento de corpos. Por exemplo, Aristóteles descreve em seu livro Física dois tipos de movimentos: o movimento natural e o movimento violento. O primeiro, ocorreria como resultado da atração entre materiais constituídos pelos mesmos elementos. Uma pedra, ao ser largada, era atraída em direção à Terra, pois ambos eram formados pelo mesmo elemento, terra. O fogo tendia a subir por ser composto predominantemente do elemento ar, que era dotado de leveza e, portanto, tendia a subir. Já o movimento violento era aquele que seguia de forma contrária ao natural. Como exemplo mais famoso, temos o movimento de projéteis.
Ao lançar um objeto, como uma pedra, no ar, este objeto percorre certa distância até cair no chão. Este tipo de movimento gerava uma grande dificuldade, tendo em vista que, para Aristóteles, não havia a possibilidade de ação à distância. Logo, o que mantinha o movimento após a perda de contato com a mão? A explicação fornecida pelo filósofo grego foi que o ar, após ser cortado, voltava ao seu local original1 por meio de correntes de ar, impulsionando o corpo para frente, um movimento que foi chamado de antiperistasis.
Embora recebesse algumas críticas ao longo da Alta Idade Média, em especial por parte de pensadores árabes como Averroes e Avampace, a ideia aristotélica para explicar o movimento de projéteis permaneceu até o advento das universidades. Já no século XIV, surgem dois grupos de pesquisadores que se dedicam arduamente ao estudo de movimento de corpos e avançam significativamente para a construção do que hoje chamamos de ciência. Estes foram os grupos do Merton College, em Londres, e da Universidade de Paris. No grupo de Merton, conhecidos como os calculadores de Merton, destacam-se os nomes de Thomas Bradwardine (1290–1349), William Heytesbury (c.1313– 1371/1372), Richard Swineshead (dados incertos) e John Dumbleton (1310–1349).
Conceitos como velocidade média, aceleração, força motriz, que hoje são do conhecimento de qualquer estudante de física no ensino médio, foram desenvolvidos por estes pesquisadores que, diferentemente dos filósofos gregos que os precederam, fizeram amplo uso da matemática, e não apenas da argumentação lógica, para o desenvolvimento de suas teorias. Eles classificavam o movimento em três categorias: movimento uniforme (com velocidade constante), movimento disforme (com aceleração constante) e disformemente disforme (com aceleração variável).
Já no grupo de Paris, o grande destaque foi Nicole Oresme, que forneceu uma demonstração geométrica do Teorema Fundamental da Cinemática. No entanto, sua maior contribuição foi a utilização de gráficos para o estudo do movimento, semelhantes ao que hoje se utiliza em planos cartesianos.
Podemos ainda destacar, seguindo a temática do estudo do movimento, os trabalhos de Jean Buridan. Sua Teoria do Impetus, supera, definitivamente, a ideia aristotélica para o movimento e dando um passo significativo para o desenvolvimento dos conceitos de inércia e impulso. Segundo Buridan, o ar não poderia ser usado como mantenedor do movimento, tendo em vista que a experiência mostrava que, na verdade, o ar opunha-se ao movimento. Sendo assim, dizia ele, o que realmente acontecia é que, após perder o contato com a mão que o lançava, o projétil ganhava um ímpeto, passando a mover-se sozinho. A resistência do ar e a ação da gravidade2 diminuíam este ímpeto, dobravam o trajeto do projétil fazendo-o cair no solo. Este ímpeto era maior tanto quanto maior fosse a densidade do corpo. Esta ideia representa os primórdios do que hoje conhecemos como inércia, uma tendência do movimento permanecer inalterado se não houver a ação de uma força externa.
É inegável a diferença entre o conceito contemporâneo de impulso e o desenvolvido por Buridan. No entanto, já é possível notar uma sofisticação maior em seus argumentos quando comparados aos da Antiguidade. Vale ressaltar que o modo como os pensadores medievais desenvolviam as suas ideias não era ainda o que chamamos hoje de ciência. Percebe-se já nessa época uma simbiose entre a física e a matemática, como ocorre atualmente. No entanto, suas hipóteses, diferentemente de conforme feita na ciência atual, não eram testadas por meio de experimentos controlados, realizados em laboratórios. Antes, faziam amplo uso de experimentos mentais, que nada mais era do que fazer uso de experiências do cotidiano.
Os conceitos de Jean Buridan influenciaram inúmeros outros pensadores medievais, como Alberto da Saxônia, que fez uso de sua Teoria do Impetus para explicar o fenômeno de queda dos corpos, e Nicole Oresme, citado anteriormente. Já no período Renascentista, o padre espanhol Domingo de Soto pesquisando sobre a queda livre e o movimento acelerado, fez inúmeros comentários acerca da teoria de Buridan. De Soto foi influenciou outros pensadores espanhóis e italianos, como Francisco de Toledo e seu orientado, Antônio Menu. Menu, por sua vez, foi professor dos padres Paulo Valla, Muzio Vitelleschi e Ludovico Ruggiero, que foram professores de Galileu, e de quem, provavelmente, teve contato com as ideias de Buridan e Alberto da Saxônia, que serviram de base para sua teoria da queda livre.
A igreja e a ciência
Talvez você esteja entre aqueles que acreditam que a Igreja efetuou uma intensa perseguição aos cientistas. Esta ideia de intolerância por parte do poder religioso quanto a qualquer prática que fosse de encontro com os dogmas é amplamente propagada, mas não encontra base na historiografia. Muitos citam o exemplo de Giordano Bruno, como queimado em uma fogueira por sua defesa à ciência. A verdade é que Bruno nunca foi exatamente um cientista. Ele ensinava o trivium na Universidade, disciplinas básica, e nunca desenvolveu ideias originais e muito menos ameaçadoras. Ele foi acusado e condenado pela prática de feitiçaria, que era considerado crime na época e, por se envolver em uma suposta prática de espionagem contra a Igreja Católica3. Na verdade, o que conhecemos atualmente como ciência foi desenvolvido no seio da Igreja, tendo em vista que grande parte dos pensadores e grandes professores medievais serem padres4, e com seu apoio financeiro. Como exemplo, a grande obra do cônego polonês Nicolau Copérnico, De Revolutionibus Orbium Coelestium, em que apresenta a sua teoria heliocêntrica, foi financiada pelo Cardela Rethicus após der apresentado a seu primo, o Cardeal Farnese, antes deste tornar-se o papa Paulo III.
Na verdade, as acusações de perseguição a cientistas por parte da Igreja Católica surgem a partir do século XVIII com o Iluminismo e se acentuam com o Marxismo no século XIX. Estes movimentos, visando diminuir a influência da igreja e a propagação da ideia materialista, constroem a narrativa da intolerância religiosa para com a prática da ciência. Esta narrativa, por questões ideológicas, predominou por longos anos. No entanto, historiadores contemporâneos cada vez mais vem descobrindo documentos contrários a estas ideias.
A Idade Média não se resume a Europa
Todas as ideias que apresentamos até o momento são apenas uma degustação do que foi produzido durante a Idade Média. Restringimos nossa análise ao estudo da física, mais especificamente ainda, ao estudo do movimento e concentramos nossa atenção apenas à Europa. Mas o mundo não se resume ao continente europeu e, existem inúmeros documentos que mostram que a atividade de pesquisa era muito intensa no continente asiático, especialmente na China e na Índia. Os chineses fizeram, neste período, avanços no estudo da ótica, estabelecendo leis matemáticas para formação de imagens, no magnetismo, descobrindo o ímã e construindo a bússola. Descobriram a pólvora, importante para o militarismo, entre outras descobertas. Mas, precisaríamos de outro artigo para comentar em mais detalhes todos esses avanços, o que pretendemos fazer em um futuro próximo. Esperamos que com esse breve artigo possamos dissipar um pouco do preconceito com relação a esse período tão fascinante da história da humanidade e que tenhamos lançado um pouco de luz sobre a Idade das Trevas.
Notas
1 Vale observar que, para os gregos, não havia a possibilidade de existência do vazio. Por isso, o ar precisava voltar ao ponto do qual havia sido deslocado.
2 Vemos que o ar passa a por-se ao movimento. Buridan descreve o movimento de projéteis como a combnação de dois movimentos: um gerado pelo motor, que confere o impeto ao objeto, e outro, a queda livre, produzida pela gravidade. Neste ponto a sua explicação difere um pouco do movimento de projéteis moderno.
3 Neste sentido, pode ser consultada a obra Giordano Bruno e o Mistério da Embaixada, trad. Eduardo Francisco Alves, Rio de Janeiro, Ediouro, 1993.
4 Como exemplo, Buridan, Oresme, Antônio Meno, Paulo Valla e outros citados anteriormente no texto.