Quando nos propomos a percorrer a já densa e parafraseada história do cinema, desdobram-se sinuosamente os vestígios da sua evolução artística, revelando as condições que apoiam o devir cinematográfico, a partir do facto de estar em permanente libertação das habituais formas de o pensar e, subsequentemente produzir.

Encontra-se na base das suas indagações multi e interdisciplinares, uma particular idiossincrasia que distingue o êxito da sua existência e dos seus atos mais transcendentes, que com tudo quanto de mais singular tem, consiste numa “fatalidade” que a domina.

Todo ato de mudança que propõe uma nova vida, pode pressupor uma “fatalidade” pronta para transformar perspetivas. Possivelmente radicado no mais alto e no mais baixo princípio da vitalidade, constitui-se esta inquietação filosófica, simultaneamente por decadência e por princípio. Modelações que talvez distinguem o cinema e as suas expansões, através da imparcialidade e ausência de preocupações, perante um conjunto de proposições que a tornam singular dentro dos seus processos de existência e ressonância.

Desde os primeiros tempos de vida do cinema, como da própria máquina fotográfica, observa-se, através da qualidade visual, uma condição análoga, que delicadamente separa as artes visuais da fotografia ou cinema (enquanto imagens em movimento), propondo uma relação que reside acima de tudo sobre uma questão. Quando acaba o cinema e começa a arte plástica? Onde se fundem dois universos e qual é o impacto criado a partir suas amplas ressonâncias?

Sobrevive uma coexistência produtora de relações que se talha e molda, convidando que favoreça: a interrogação, a inquietação, a faculdade do juízo, admitindo a ultrapassagem do suportável.

Face às transformações da imagem que colocam em perspetiva imprevisíveis relações artísticas, geram em determinado ponto de produção, instintivas somas de tudo quanto vê, ouve e vive reformulando o princípio da seletividade artística. É o cinema que reage a todo o estímulo, sentindo o encanto próprio de tudo quanto dele se aproxima, mas que ainda está longe de ir ao seu encontro.

Surge, perante as suas múltiplas manifestações premonitórias, uma ideia de materialidade. A partir de procedimentos escultóricos que se revelam, com base na migração da montage, da edição cinematográfica, fundamentam o processo de mise en scène, enquanto conceção totalizadora da obra de arte, plasmando a ideia de um “mundo aparente” de valor próprio expandido e atento ao que é estranho e problemático na existência sobre tudo quanto foi até agora condenando a lógica ou ortodoxia artística.

Estas transformações vieram abrir um campo, primeiro no contexto moderno, depois na sua crítica e reformulação, que representa uma das linhas centrais de desenvolvimento das artes visuais durante o século XX. A essa possibilidade, não são alheios os processos de fragmentação da imagem, da coexistência de temporalidades diferidas, de convite ao espectador para a realização de périplos em torno das obras ou de fazer eclodir na imagem narrativas ou ficcionalidades, sejam elas explícitas ou intuitivas.1

Estes processos fílmicos e puramente filosóficos difundidos a partir do pós-guerra, complementam a unidade cinematográfica contemporânea, estando muito próximo do cinema como campo ambiental, imersivo, espacial, temporal e espiritual. O recurso a determinados elementos que redefinem as margens do conceito de cinema expandido, restruturam a arqueologia do cinema, estabelecendo propostas de uma nova forma de ver, suportar e arriscar o mundo.

De forma descomplexada, o artista entende que o objeto, gerador de energia (monitor, projetor, câmara de vídeo), é inerente à sua expressão criativa e intelectual, visto por Rausalind Krauss como um eminente ego líbido do artista. Desenvolve, portanto, uma relação empírica com as suas extensões, procurando primeiro entende-las e posteriormente modelá-las enquanto, ações intuitivas que partem da subjetividade da sua própria psicologia, tornando estes equipamentos extensões de si próprios.

Esta relação transversal e convergente, é projetada para espaço de leitura ambígua consubstanciada entre o próprio artista e o observador, que perante um terreno alienado, promove a sua vitalidade através da ativação instintiva da psique, que alcança a própria fiscalidade do corpo, embutido no espaço, sobre as elementaridade subatómicas expostas através da luz, do som, e subtraídas posteriormente ao silêncio.

Esta capacidade de nutrir a psicofisiologia de corpos que se encontram em trânsito no espaço e no tempo, promovem estados de atenção orgânicos e imprevisíveis. Princípios de uma emancipação que plasmam deambulações filosóficas que preenchem de existência visceral a condição ilimitada de ver.

Já segundo Michael Fried, o estado de atenção pressupõe a experiência situacional e temporal. Ambos os gradientes abstratos, constituintes desta dicotomia ativa no universo do cinema expandido, podem surgir a partir da instalação de vídeo que colocam em potência a experiência do observador que se movimenta e por sua vez, emancipa no espaço e tempo, envolvido pela teatralidade e movimento, assim como pelas composições luminosas que tornam o ambiente efetivamente imersivo e sinestésico.

As contaminações do cinema e das artes visuais, figuram formas híbridas de estruturações artísticas, no qual o observador se envolve com a obra de modo interna e externa, isto é, ao nível da interpretação crítica da obra e, por sua vez, consciente do espaço e da arquitetura.

(...) expanded cinema is the beginning of that vision. We shall be released. We will bring down the wall. We’ll be reunited with our reflection. I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image exchange between man and man. The cinema, said Godard, is truth twenty-four times a second. The truth is this: with the possibility of each man on earth being born a physical success, there is no archetypal Man whom one can use in a culturally elitist manner and each man becomes the subject of his study. The historical preoccupation with finding the one idea that is Man will give way to the idea that earth is, and then to the idea of other earths. 2

[(...) o cinema expandido é o início dessa visão. Seremos libertados. Derrubaremos o muro. Estaremos reunidos com nosso reflexo. Escrevo no final da era do cinema como o conhecemos, no início de uma era de troca de imagens entre homem e homem. O cinema, disse Godard, é verdade vinte e quatro vezes por segundo. A verdade é esta: com a possibilidade de cada homem na terra nascer com sucesso físico, não existe nenhum Homem arquetípico que se possa usar de uma forma culturalmente elitista e cada homem torna-se objeto do seu estudo. A preocupação histórica em encontrar a única ideia que é o Homem dará lugar à ideia de que a Terra existe, e depois à ideia de outras Terras.] 2

Hoje, mais autêntico em relação às noções que consubstanciam a sua própria existência ensimesmada sobre uma permanente realização da sua conduta transformadora de si próprio, condiciona-se o estímulo cinematográfico. Plasma-se e absorve através de um ideal artístico que reside na dúvida. No ato de ser crítico. Na forma de gerar inquietações radicadas no pessimismo que por si só reflete uma maior vitalidade artística restabelecendo uma filosofia própria, capaz de reagir, capaz de desdobrar um novo espaço de cruzamentos e interceções.

Este é o cinema transdisciplinar que se expande para lá das suas aparentes fronteiras que não representam mais do que formalismo ortodoxos que sugam da filosofia a decadência pronta para transformar perspetivas. Primeira razão pela qual porventura foi dado às artes a capacidade de promover uma “transmutação de valores”.

Referências

1 Sardo, Delfim. “O Exercício Experimental da Liberdade”. Orfeu Negro, Lisboa. 2017
2 Youngblood, Gene. Expanded Cinema: Fiftieth Anniversary Edition (Meaning Systems). Fordham University Press. 2020