A casa da saudade é o vazio
o acaso da saudade fogo frio
quem foge da saudade, preso por um fio, se afoga em outras águas, mas do mesmo rio.

(Lenine)

Os linguistas, em especial Saussure, sempre foram e são lidos pelos psicanalistas. Considerando que a clínica se estrutura a partir da escuta da fala de um sujeito e de seus modos de se (des)arranjar na língua, pensar sobre isso, mobilizando formulações orais ou escritas, bem como obras literárias, esteve no horizonte do inventor do inconsciente. Arrivé1, por exemplo, assegura que Freud conheceu o Curso de Linguística Geral (CLG) a partir da leitura da tese do psiquiatra e psicanalista suíço Raymond de Saussure, filho do mestre genebrino. Afinal dela, Freud 2 fez o prefácio:

Graças ao sr. Choi Young Ho, pude consultar a obra de Raymond de Saussure La méthode psychanalytique. Sob o seu aspecto de tese universitária, ela ainda não está munida do prefácio de Freud. Todavia, o autor toma o cuidado de precisar que ‘o sr. professor Freud nos fez a honra de ler e corrigir o trabalho’ (p. 6). Ocorre que o CLG é explicitamente citado por Raymond de Saussure (p. 83, nota 1, sobre o lapso). Logo, temos a prova irrefutável de que Freud conhecia a existência do Curso.

Não apenas esse litorâneo contato merece ser registrado, mas também o modo como Lacan3, em diferentes modos de sua transmissão, cita o Cours e os manuscritos, fazendo explícita referência ao estudo dos saturninos.

A publicação, feita por Jean Starobinski no Mercure de France de fevereiro de 1964, das notas deixadas por Ferdinand de Saussure sobre os anagramas e seu uso hipogramático, desde os versos saturninos até os textos de Cícero, dá-nos a certeza que nos faltava nessa ocasião.

Tanto nas edições do Curso, quanto nos manuscritos, está manifesto o interesse de Saussure pelo som e a representação psíquica dele, designado como significante e estruturado ao modo de uma extensão. O sistema é construído e desarranjado exatamente a partir dele como um fio que costura cacos e amarra pedaços (Sousa, no prelo4). No caso do poético anagramático, as combinatórias de fragmentos sonoros (sem um ponto de fechamento) fazem eclodir o não sentido, o puro de som de nada que desliza e pode se combinar (ou não) com qualquer outro som, uma tagarelice de partículas isoladas:

As palavras anagramatizadas, decriptadas no texto de superfície, escapam tão totalmente quanto possível ao regime do signo. Aqui, nada de significantes – Saussure não utiliza jamais essa palavra na pesquisa sobre os anagramas – mas pacotes de sons e de letras, segmentáveis fora de qualquer restrição de linearidade. Aqui, nada de significados – tanto como significante, essa palavra não aparece na pesquisa (...) ela se situa totalmente afastada do modelo do signo linguístico (Arrive5).

Por conta disso, é possível afirmar que a cadeia de significantes inconsciente concebida por Lacan foi pressentida por Saussure nos Anamagramas6. E que imensa coragem apontar os furos do/no sistema da língua que fora criado por ele mesmo! Gadet e Pêcheux7 asseguram que o ponto em que a ciência linguística relaciona-se com o registro inconsciente foi negligenciado pela ciência linguística por décadas. A primazia da mínima unidade do sistema é a condição do brincar de lalangue, qual seja, condição de estar submerso em um universo sonoro sem sentido em que os barulhos se sucedem sem amarração semântica possível. Isso dá as bases para Lacan trabalhar com o ato falho que comete e do qual tira consequências.

Há um percurso interessante para se compreender a produção de seu lapso, que é descrito por Lacan ao esclarecer que o vocabulário de psicanálise fora elaborado por Laplanche, e o vocabulário de filosofia fora elaborado por Lalande. Lalangue é o significante que emerge do deslizamento metonímico dos significantes Laplanche e Lalande (...) alíngua é fundamento da linguagem; alíngua é o registro que fala aos afetos; é o som antes do sentido; alíngua tem relação estreita com a língua materna (...) alíngua toca no poético (...) (Motta8).

Lalíngua dos sons desconexos e retumbantes sem sentido ou forma, instância pré-palavra que submergiu o humano já no corpo materno: a barulheira de órgãos e águas, vozes do mundo e ruídos de objetos a engendrar um universo de sons indistintos. Os barulhos do corpo materno, do nascimento, dos primórdios do humano em seu contato com a carne e o mundo, representam sons que não se engatam uns em outros, mas vivem isolados em estado de pura fruição. Não constituem ainda o fio do dizer de um sujeito, nem situam uma linha ao modo de uma extensão, tampouco significam coisa alguma, som de nada, puro fluxo sem ponto de parada. Lalíngua, (...) a sonoridade e o que há de canto, ao invés de sentido (...) (Lemos9). Em um momento posterior, sustentará a possibilidade e latência do próprio sistema a partir da entrada do sujeito na língua, assim é a matriz do falasser, a partir da qual haverá inconsciente e equívoco. (Lemos10), e haverá poesia. O cartão-postal de Rosa que o diga:

image host Desenhos no livro de correspondências de João Guimarães Rosa11

O “ooó” próprio à neta desloca-se para a articulação singular entre ó e ô em “ooó do vovô” inventada por Rosa. O espaço comparece todo preenchido por esse jogo barulhento de vozes, tendo no centro a neta de mãos dadas com o vovô Joãozinho, na beira um passarinho com uma flor no bico. E os gatinhos, bichos que usualmente não gostam de água, nadam e jogam submersos em alarido de encontros. Todo o cartão barulha. Essa singeleza de construção roseana inscreve o próprio da lalíngua de um sujeito, em seu (ainda) desconhecer o código, em seu gozar de produzir ruídos com o corpo, em seu prazer de sentir na pele as marcas de ruídos e grunhidos primevos, em não precisar se submeter a nenhum sistema ordenado pela língua, cultura e convenções sociais que ambas implicam.

Sobre o livro e as lembranças do Vovô Joãozinho, Vera Tess12 relembra :

Vovô Joãozinho não era meu avô biológico, mas meu avô de coração e de fato, o único que conheci. Era o vovô que contava histórias, muitas histórias, que fazia dormir cantando músicas de ninar, que levava ao Zoológico – adorávamos o Zoológico do Rio – que escrevia cartas e desenhava cartões... Quando ele morreu, num domingo, 19 de novembro de 1967, eu tinha quatro anos e três meses. Três dias depois da posse na Academia Brasileira de Letras. Estávamos no Rio para a cerimônia, meus pais e eu. Meus pais voltaram para São Paulo na manhã do dia 19, e eu fiquei. Todos os domingos, quando eu estava no Rio, minha avó e eu íamos à missa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana que ficava justo ao lado do edifício. Na volta para casa, eu levava pipoca para ele. Naquele domingo, ao entrar no salão dos fundos, onde ficava o escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha e chamando-me... ‘ooó’. Soube depois: estava tendo um infarte. Em minha última lembrança, ele está deitado num dos quartos, vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras, muita confusão no apartamento. Cada vez que releio esses cartões, sinto um carinho imenso por esse ‘vovô queído’ e muita pena por não ter tido mais tempo com o nosso vovô Joãozinho.

O vovô Joãozinho queído, no momento da explosão de seu coração e do assombro derradeiro, balbucia algo de lalíngua de sua neta. Ooó e ponto.

Notas

1 Arrivé, M. Linguagem e psicanálise – linguística e inconsciente: Freud, Saussure, Pichon, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 24, 1999.
2 Freud, S. Além do princípio de prazer. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio Janeiro: Imago. [1920] 1996.
3 Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
4 Sousa, L. M. A. No princípio do sujeito é o som – essa placenta de palavra. Revista Interfaces. (no prelo).
5 Arrivé, M. Linguagem e psicanálise – linguística e inconsciente: Freud, Saussure, Pichon, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 24, 1999.
6 Schaffer, M.; Settinerj, F. F.; Barbisan, L. B; Teixeira, M.; Nóbrega, M.; Flores, V. N.; Brauner, M. A constituição da subjetividade: a questão do significante In: Aventuras do sentido – psicanálise e linguística. Margareth Schaffer, Valdir do Nascimento Flores, Leci Borges Barbisan (orgs). Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 198, 2022.
7 Gadet, F.; Pêcheux, M. A língua inatingível. Campinas: Pontes, p. 58 e 59, [1981] 2004.
8 Motta, V. O poético na análise do discurso de Michel Pêcheux. Campinas, Pontes Editores, p. 147-149, 2019.
9 Lemos, C. T. G. Lalíngua: acontecimento e transmissão. In: Savoir-faire avec lalangue. Campinas: Mercado de Letras, Paris: Association de Phycanalyse Encore, p. 42, 2015.
10 Lemos, C. T. G. Lalíngua: acontecimento e transmissão. In: Savoir-faire avec lalangue. Campinas: Mercado de Letras, Paris: Association de Phycanalyse Encore, p. 46, 2015.
11 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
12 Tess, V. Meu avô Joãozinho In: Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, p. 12, 2003.