Cruzar a Europa de trem foi divertido nas primeiras 5 horas nas quais eu estava em um ônibus. Primeiro, é preciso saber que todos os filmes que pintam uma viagem longa de trem como mágica, glamourosa e romântica, estão mentindo. Tudo bem, eu também fui enganada. Como morei minha vida toda no Brasil e nunca tinha andado em um trem antes, eu havia construído toda uma narrativa baseada na mídia que eu consumia de que a minha viagem seria ótima.
A minha imaginação fabricou uma mistura de Harry Potter e Before Sunrise, mais ou menos assim: viajaria em um trem antigo e espaçoso, com vapor quente saindo e que um homem bem vestido carregaria minhas malas, me chamaria de “madame” e seria gentil. Eu me sentava calmamente e poderia ler o livro que separei em minha bolsa. Até mesmo isso eu havia pensado, não poderia ser um livro bobo e popular, pois na minha mente eu também conheceria o amor da minha vida naquele vagão.
Ele estaria sentado à minha frente, ou no banco ao lado, um homem elegante, alto, com feições reais e que estaria lendo alguma coisa digna, como Carl Sagan ou John Steinbeck. Ele estaria voltando para casa após trabalhar em Milão, e me perguntaria sobre o meu livro-não-casualmente-escolhido: Os Médici. Eu o impressionaria com todo o meu conhecimento, que na verdade adquiri escutando um amigo muito mais brilhante em Florença.
Se eu tivesse que dormir, seria algo simples e cativante de ver, e eu acordaria com as paisagens lindas passando pelas janelas. Não haveria problemas com passagens ou documentos, e eu comeria coisas saudáveis, mas não muito, para guardar dinheiro. A minha viagem seria calma, com alguns toques de romance e eu chegaria bem descansada, satisfeita e com um encontro marcado.
A realidade foi um pouco diferente, mas com um ar de comédia bem interessante.
Eu peguei um ônibus saindo de Florença para Milão, carregando duas malas grandes e vermelhas comigo, e ainda uma mochila recheada. Precisei andar um quilômetro do meu apartamento até o ponto de trem que levava a rodoviária no final da cidade, e minha colega de quarto me ajudou no trajeto, cada uma com uma mala desbravando Florença. A sensação de deixar a cidade, ver minha amiga acenando do lado de fora do ônibus, foi bastante melancólica.
Eu havia passado 2 meses no meio da magia antiga de Florença, e agora estava deixando a coisa mais bela que já havia visto para trás. Mas tudo bem, eu tinha uma bolsa cheia de batatinhas-fritas, bolachas e água, e a viagem de ônibus até Milão não foi ruim. O problema foi ao chegar em Milão, quando eu tinha apenas 45 minutos para sair da rodoviária e chegar em Milano Centrale, a ferroviária.
Com a mochila pesando muito, puxando duas malas vermelhas atras de mim e com a cara de poucos amigos, saí da rodoviária e corri até o único taxi estacionado na frente do lugar. O homem era um senhorzinho que nem se quer carregou as minhas malas e cobrou demais na corrida, mas cheguei ao lugar certo apenas alguns minutos antes do trem partir. Meu primeiro trem foi pela TrenItalia, de Milao para Zurich, na Suiça, e eu achei que minha aventura começaria em uma forma perfeita. Na ferroviária eu não encontrei problemas, pois todas as placas estavam em italiano e inglês, de forma que minha conexão foi tranquila.
Mas é claro que a viagem foi diferente. O trem era o mais magnifico que já andei, ele era longo e vermelho, limpo, trabalhado na tecnologia em todos os sentidos. Com cadeiras brancas espaçosas e até mesmo consegui um lugar a janela, o que me possibilitou poder ver os Alpes Suiços bem de pertinho. Na minha frente se sentou um homem lindo, mas muito silencioso, e tenho que admitir que passei as 4 horas admirando a paisagem dentro e fora do vagão.
O problema mesmo começou quando o trem chegou em Zurich e eu tinha 15 minutos para encontrar minha próxima condução. Além das malas pesadas (que ainda não tinha tido ajuda para segurá-las), a ferroviária era enorme. Nunca em meus 22 anos eu havia estado em um lugar imenso e confuso como aquele: O Zurich HB possui 26 trilhos e recebe quase 3 mil trens diariamente. O quadro de horários é gigantesco e fica pendurado no meio das plataformas, constantemente cercado de pessoas vidradas tentando desvendar os símbolos exibidos.
Foi nos poucos minutos que eu estava parada sozinha na frente de um trem aleatório, cercada de pessoas apressadas com suas próprias bagagens, e sem nenhuma informação do nome do meu trem nas passagens, que eu percebi que a noite seria difícil. O que eu mais temia aconteceu: eu estava perdida em um país distante, onde eu não conhecia ninguém e não entendia nada do que estava escrito ou era pronunciado. Eu sempre quis ter várias aventuras, mas não desse modo.
Ao contrario da Milano Centrale, onde tudo era escrito em inglês e italiano, a Zurich HB estava estritamente em alemão, e eu nao sabia nem palavras básicas nessa língua. Fiquei um tempo tentando desvendar o que estava escrito no quadro mas sem sucesso, pois eram muitos nomes e eu ainda não entendia os números que estavam ali. Eu sabia que nao podia perder o trem noturno para Duisburg, eu não estava com dinheiro sobrando para passar uma noite em Zurich, não conhecia ninguém, e perderia minhas passagens se não pegasse o trem certo.
Decidi pedir ajuda a duas mulheres que também olhavam o quadro e conversavam em alemão. Eu havia concluído que para tentar evitar tornar a minha história em um daqueles documentários de crime real na Europa era melhor pedir informaçoes a mulheres ao longo do caminho, havia menos chances de arrumar problema. E na minha opiniao essa regra vai valer pelo resto da minha vida, pois as duas mulheres que abordei falavam ingles e foram muito prestativas, elas consutaram um aplicativo e conseguiram achar a plataforma do meu trem, o qual eu consegui entrar sem problemas.
O trem noturno que peguei foi bem diferente, era mais barato, as cadeiras duras e sem local para colocar minhas malas, então elas ficaram aos meus pes. A luz do vagão não foi apagada ou diminuída, o que significou a pior noite de sono para uma pessoa com sensibilidade à luz. Eu também não havia reservado um lugar, então precisei ficar mudando de lugar a cada parada do trem, pois outras pessoas haviam reservado os lugares que escolhi me sentar.
Foi nesse trem que conheci a primeira pessoa curiosa da viagem: Franciska Carmen. Uma senhora de 70 anos que se sentou a minha frente durante a viagem, ela tinha um inglês quebrado mas era simpática demais para não falar comigo. Ela estava a caminho de Amsterdã para ficar com alguns amigos durante a semana. Ela teve 5 filhos e 5 netos, todos mais novos que eu, e ela conhecia a amiga que vivia em Amsterdã desde que tinha 15 anos.
A conversa com ela foi serena e equilibrada durante a noite, e eu espero que ela se lembre dos detalhes que compartilhei com o mesmo cuidado com que me lembro dela. Infelizmente ela foi a melhor coisa daquele trem, e a partir dela as melhores coisas do resto da viagem foram as pessoas que eu conheci. Saí do trem em Duisburg quebrada em pedacinhos pela pior noite possivel, mas para a minha sorte o trem para Hamburgo já estava na plataforma e uma onda nova de pessoas esperava para entrar.
Ao tentar passar minha enorme e pesada bagagem para dentro do trem novamente, conheci o segundo anjo dessa jornada. Claudie era uma moça 2 anos mais velha que estava indo para a Noruega visitar a irmã, com apenas uma enorme e pesada mochila de back-packing nas costas. Ela ajudou a levantar minha mala vermelha para a plataforma e nos sentamos juntas durante a viagem.
Com a paisagem mudando rapidamente nas janelas em direção a Hamburgo, aprendi uma lição muito valiosa: a de que o povo brasileiro consegue se infiltrar em situações aleatórias em toda a terra. Claudie, nascida e criada na Alemanha, havia passado um ano na Bahia estudando capoeira. O fato me pareceu tão curioso que não precisei anotar para me lembrar depois.
Nós iriamos pegar os proximos 2 trens juntas e conversamos em português o tempo inteiro, ela traduzia os anuncios em alemao para que eu entendesse e conversavamos sobre oque ela faria na Noruega e suas aventuras. O trem ate Hamburgo havia sido bem confortavel, com espaço para as bagagens e suficiente para dormir um pouco. O maior problema foi o trem que precisavamos pegar de Hamburgo para Aarus.
Havia uma quantidade enorme de pessoas esperando por ele, todas com assentos reservados mas o trem chegou com 8 vagões faltando, por problemas técnicos. Isso quis dizer que que centenas de pessoas ficaram sem lugares, tivemos que ficar em pé durante 3 horas, amassados uns com os outros e ainda segurando nossas malas extremamente pesadas. Claudie, um espírito livre, conseguiu se sentar no vão entre bancos e segurar nossas malas, mas precisei ficar em pé.
Eu realmente achei que o Brasil não poderia se infiltrar além da minha presença e de uma alemã praticante de capoeira dentro de um trem lotado de pessoas brancas voltando para sua casa no norte do globo, mas eu estava errada. Pois sentado a nossa direita, um homem de meia idade escutou nossa conversa em português e decidiu se juntar a nós.
O nome dele era Hugh, era um professor de universidade da Nova Zelandia, que sempre viajava a trabalho para fazer palestras em lugares diferentes. Ele nos contou que viveu 2 anos no Rio de Janeiro, que sua única filha nasceu em Seoul, na Koreia do Sul e aos 8 anos era fluente em inglês, português e koreano. Nós três falamos mal da companhia do trem por um bom tempo, e por alguma intervenção divina ninguém mais conseguia nos entender.
Quando o trem lotado chegou na cidade de Kolbing, precisei descer. Foi um sentimento estranho, eu sabia que ainda tinha 5 horas de viagem pela frente, mas sentia que eu estava saindo da pior parte de um pesadelo. Estava tão cansada que parecia que a viagem foi uma alucianação. De que modo mais eu conseguiria explicar encontrar tantas pessoas aleatórias e curiosas que falavam português e me davam pequenas janelas para suas vidas?
Sentada esperando os trens da Dinamarca chegar, eu estava triste por ter deixado Florença, por ter conhecido pessoas e lugares que talvez eu nao conseguisse chegar novamente. Eu realmente havia vivido uma aventura, e estava contente por ter chegado aonde deveria, no momento certo, com as pessoas certas.
Mesmo assim, ainda acho que o sistema de trens da Europa pode ser muito confuso e desnecessariamente complicado, nada de romance cruzando a Europa em 28 horas.