Afirma-se que a literatura se caracteriza por seu caráter ficcional. Guimarães Rosa, Mia Couto, Cora Coralina, por exemplo, usam a palavra estória (com e inicial e sem h) para marcar o caráter ficcional de sua produção literária, distinguindo-a de história (com agá), que seria reservada para a narração de acontecimentos reais. O vocábulo estória, aliás, já é registrado no Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Volp) e nos principais dicionários da língua portuguesa.
Os dicionários definem ficção como ato ou efeito de fingir, criação imaginária (Houaiss), simulação, fingimento, criação ou invenção de coisas imaginárias (Aurélio). Ficcional, portanto, se opõe a real. Uma obra de ficção, em tese, não relataria um fato ocorrido, mas um fato criado pela imaginação de um autor.
Uma passagem da novela A hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, é exemplar nesse sentido. O narrador, adotando um processo não costumeiro, faz questão de deixar explícito o caráter fictício da matéria narrada, quando diz:
E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.
Outro autor, o moçambicano Mia Couto, assim começa o conto O cachimbo de Felizbento, que faz parte do livro Estórias abensonhadas:
Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória.
Numa linguagem poética, Mia Couto nos faz refletir sobre a oposição ficção vs. realidade e, portanto, sobre a verossimilhança: a ficção finge ser verdade, mas ela é contada pela palavra, que é como fumaça, portanto leve demais para se prender ao real. Há, para ele uma relação simbiótica entre ficção e verdade, pois esta também quer se tornar aquela. Em outras palavras, Mia Couto retoma a questão de que a arte imita a vida, mas a vida imita a arte.
Há, evidentemente, narrativas de ficção que se baseiam em fatos reais. Isso ocorre com frequência em narrativas cinematográficas. Num gênero que se convencionou chamar de jornalismo literário, há o rompimento com o caráter ficcional da literatura, uma vez que apresenta narrativas de acontecimentos efetivamente ocorridos, dando a eles tratamento literário, como ocorre em O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, O jornalista e o assassino, de Janet Malcolm, e A sangue frio, de Truman Capote. Este último chega a apresentar no subtítulo a seguinte informação: relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências.
No domínio das narrativas apoiadas no real, há ainda as biografias, autobiografias, livros de memórias e romances de formação que se inserem na esfera literária como Infância e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, os seis volumes das memórias de Pedro Nava, Viver para contar, de Gabriel García Márquez, De amor e trevas, de Amós Oz, e os três volumes de Os diários de Emílio Renzi, de Ricardo Piglia.
As palavras ficcional e ficção estão ligadas ao radical latino fing-, que aparece em fingir e fingimento, e um de seus sentidos é aquilo que é inventado, imaginado. Não é sem razão que Fernando Pessoa, referindo-se ao fazer poético, afirma, no poema Autopsicografia que O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.
Mesmo obras literárias baseadas num fato real costumam se valer de simulação, ou seja, o ponto de partida é verdadeiro, mas a história é criada pela imaginação. É o que ocorre, por exemplo, em A festa do Bode, romance do escritor peruano Mario Vargas Llosa em que se relatam os acontecimentos ocorridos na República Dominicana durante a ditadura do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, o Bode, entre os anos 1930 e 1961. Nesse romance, personagens e acontecimentos reais convivem com personagens e acontecimentos fictícios.
Um romance não é, pois, o relato de um acontecimento verdadeiro, mas verossímil, isto é, semelhante à verdade num dado universo sociocultural. A palavra verossímil significa exatamente isso: vero (verdadeiro); símil (semelhante).
A verossimilhança está ligada a uma estratégia discursiva para fazer parecer verdadeiro aquilo que se enuncia. A novela A metamorfose, de Franz Kafka, inicia no momento em que o protagonista, Gregor Samsa, acorda e se vê transformado num inseto monstruoso. Nosso conhecimento de mundo atesta que não é plausível ir dormir numa noite como humano e acordar na manhã seguinte metamorfoseado num inseto monstruoso, mas Kafka nos conta o fato de modo que aceitamos aquilo como verdadeiro no universo da ficção, ou seja, Kafka inicia sua novela transpondo o leitor para uma realidade que ele sabe existir somente no universo da ficção, mas isso não impede que aquele que lê aceite a narrativa como verdadeira, dada sua coerência interna. Em decorrência da verossimilhança, no romance Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, aceitamos que Vadinho, depois de morto, volte para dormir com a ex-mulher, Dona Flor, que já estava casada com o farmacêutico Teodoro.
Ainda em relação à ficcionalidade, destaco seu caráter contratual, o que significa que ela decorre de um acordo tácito entre autor e leitor, em que o primeiro tem por intenção produzir um texto ficcional e o segundo, aceitando o contrato de ficcionalidade proposto pelo primeiro, se dispõe a ler o texto como uma obra de ficção e não como um acontecimento real. A não leitura como ficção de um texto ficcional pode levar a situações cômicas como aquelas em que pessoas na rua ofendem um ator de novela de tevê por ele encarnar o papel de vilão. A respeito disso, vale registrar um fato ocorrido em 1882 na cidade norte-americana de Baltimore. No teatro, era encenada a peça Otelo, de Shakespeare. No momento em que o mouro vai matar Desdêmona, um soldado encarregado da guarda do teatro atira contra o ator que interpretava Otelo para salvar Desdêmona. Indagado por que atirou no ator, o guarda responde que não iria admitir que um negro tirasse a vida de uma branca. Além de não distinguir realidade de ficção, era racista.
Em algumas narrativas literárias, explora-se o caso de algum personagem ter seu comportamento influenciado pelo fato de processar como realidade fatos ficcionais relatados em narrativas lidas. O exemplo mais conhecido é o Dom Quixote, de Cervantes, em que o já velho Alonso Quijano, depois de ler muitos livros de cavalaria, crê que é um cavaleiro, Dom Quixote, e que uma camponesa, Aldonza Lorenzo, é sua dama, Dulcineia del Toboso, e sai montado em um velho cavalo, paramentado como cavaleiro andante, acompanhado de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, misturando realidade e fantasia e vendo inimigos que não existem na realidade como na célebre passagem da luta contra os moinhos de vento.
Em algumas obras, o autor, para reforçar o pacto ficcional, chega a afirmar que a história que está narrando é verídica. No Capítulo 3 da segunda parte do romance O guarani, de José de Alencar, o narrador afirma:
Mas não antecipemos; por ora ainda estamos em 1603, um ano antes daquela cena, e ainda nos falta contar certas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história.
O mesmo ocorre em A emparedada da rua Nova, romance de Carneiro Vilela, adaptado para a televisão com o nome de Amores roubados. Nele, o autor deixa o leitor na dúvida se o fato narrado ocorreu realmente ou se se trata de ficção. A certa altura, chega a afirmar:
Justamente a uma dessas casas vamos conduzir o leitor; unicamente, porém, como escrevemos um romance real e verídico, não declaramos aqui, por escrúpulo bem entendido e por conveniências que todos compreenderão, nem o gênero do negócio nem o número da casa.
Na expressão romance real e verídico, a palavra romance, que remete ao universo ficcional, está determinada por dois adjetivos que remetem ao verdadeiro.
Quanto me refiro ao caráter ficcional da literatura, não estou afirmando que apenas os acontecimentos narrados e os personagens são fictícios. Outros elementos da narrativa também costumam ser frutos da imaginação criadora do autor. O narrador, que não deve ser confundido com o autor empírico, também é uma obra de ficção. O finado Brás Cubas, narrador de suas Memórias póstumas, não deve ser confundido com o sujeito ontológico Machado de Assis. Paulo Honório, o narrador de São Bernardo, pode ser visto como uma antítese de Graciliano Ramos, o autor da obra.
Se uma das características da literatura é seu caráter ficcional, a recíproca não é verdadeira, pois não é qualquer história inventada que pode ser considerada literária. Romances baratos, comercializados em bancas de jornais, com capas sugestivas, que contam histórias açucaradas e com final feliz depois de a heroína passar inúmeras provações são evidentemente obras de ficção, mas não são consideradas literárias, por faltar um elemento essencial de que tratei em artigo anterior, a legitimação institucional de que falamos no artigo O que é mesmo a literatura?.