No dia 14 de setembro de 2019, em Paris, num bonito e importante evento promovido pelo editor e antigo livreiro João Heitor Rebelo, em homenagem à cultura brasileira, pude apresentar meu livro de poemas, O amor é uma companhia/ L'amour est une compagnie, publicado em edição bilíngue pela Éditions Convivium Lusophone, no Café Louise St Germain des Prés, livro que conta com a cuidadosa tradução de Fernando Carmino Marques e com a revisão de Catherine Simonot e de Marie Christine Freyens. O carinho de todos, de João Heitor e de sua família, a música de Villa-Lobos, de Caetano Veloso e de outros, as leituras de poemas em francês e em português, a preocupação com o Brasil e o acolhimento sensível fizeram do momento uma ilha em que ainda se podia respirar.

João António Rebelo Heitor, como nos versos de Ricardo Reis, é inteiro, “em cada coisa”, capaz de colocar tudo o que é em tudo o que faz, contagiando a todos com o entusiasmo. Movido por esse entusiasmo, durante vários anos, manteve em funcionamento a livraria Lusófona, no Quartier Latin, em local próximo à Sorbonne, em Paris, cidade em que passou a morar, a partir do momento em que deixou Portugal, quando era ainda muito jovem. Apesar de já não mais atuar como livreiro, ele continua, atualmente, a estimular a cultura lusófona, na capital da França, por meio de edições de livros efetuadas pela Éditions Convivium Lusophone. Além do trabalho de edição, em que consegue dar espaço para o encontro de culturas diferentes, João Heitor realiza vários eventos culturais, em Paris, criando, por meio deles, oportunidade de convívio entre franceses, portugueses e outros falantes de língua portuguesa, reunidos em torno da arte e da literatura. Indagado acerca da importância de se publicar poesia brasileira contemporânea, na França, João Heitor responde, comentando ainda acerca de sua trajetória e motivações.

Por que editar em francês os poetas brasileiros?

Foi uma escolha que fiz como editor (e livreiro) em Paris quando editei Grandes Voix de la Poésie Brésilienne du XX ème Siècle, já na quarta edição (esgotada). O Francês é uma língua latina, uma língua de grandes poetas. Poetas como Mario Quintana, Augusto Frederico, Artur Eduardo Benevides, Adélia Prado, João Cabral de Melo Neto, Augusto Frederic Schmidt, Murilo Mendes... eram desconhecidos num país considerado culto. Com esta edição organizada por Jean-Pierre Rousseau, para mim, o francês que melhor conhece a poesia brasileira e um dos melhores tradutores do português do Brasil para francês, abriu-se um espaço de leitura nas escolas, nas bibliotecas municipais, nas associações, nos convívios, sempre numa forma de leituras, espetáculos e de descoberta. Traduzir poesia de poetas brasileiros para francês é uma tarefa árdua e muito difícil. Tenho a sorte de ter Amizade com os melhores tradutores. Com 50 anos de vida em França, com filhos e netos nascidos neste solo, adotei sempre como território o que disse Fernando Pessoa: ‘Minha Pátria é a Língua Portuguesa’. Quando vou no metrô de Paris e oiço falar português com diferentes sotaques, sinto uma fraternidade que chega a ser uma loucura. Gosto ‘partager’ a nossa poesia aos meus Amigos franceses.

João Heitor se dedica agora à edição de um livro formado por poemas de escritores brasileiros contemporâneos, a ser lançado, em edição bilíngue. Entre as poesias, está o meu poema, Duplo1, que apresento a seguir em língua portuguesa e francesa:

Duplo

A outra woman in the sun
não olha pela janela
nem acende um cigarro
enquanto vê o quadro de E. Hopper
postado no Instagram.

Não há prados montes
na janela do quarto pequeno
desta mulher ao sol
mas há na pele cicatrizes de partos
a memória da amiga quase morta
das amigas mortas
dos filhos deixados
pelas amigas mortas
e dos filhos quase deixados
pelas amigas quase mortas
que depois morreram.

A rede de proteção na janela
impede suicídios involuntários
e filtra a luz que queima a pele
desta mulher in the sun
enquanto ela medita sobre a falta de vitamina D
e a necessidade de médicos.

Lá fora há o grito do cortador de gramas
e em torno a vigília de vizinhos
com olhos postos em janelas.

Double

L’autre woman in the sun
ne regarde pas par la fenêtre
et n’allume pas de cigarette
pendant qu’elle regarde le tableau de E. Hopper
posté sur Instagram.

On ne voit pas de prés sur les collines
par la fenêtre de la petite chambre
de cette femme au soleil
mais sur sa peau il y a des cicatrices d’accouchements
le souvenir d’une amie presque morte
des amies mortes
des enfants abandonnés
par les amies mortes
et des enfants presque abandonnés
par les amies presque mortes
qui après sont mortes

Le filet de protection à la fenêtre
empêche les suicides involontaires
et filtre la lumière qui brûle la peau
de cette femme in the sun
pendant qu’elle médite sur le manque de vitamine D
et le besoin de médecins.

Là dehors il y a le cri de la tondeuse
et tout autour la surveillance des voisins
les yeux postés sur les fenêtres.

Notas

1 Souza, Cristiane Rodrigues de; Borsato, Fabiane Renata. Prefácio. In: Sobressaltos: antologia de poemas brasileiros contemporâneos/ Sursauts: anthologie de poèmes brésiliens contemporains. Tradução de Catherine Simonot, revisão de Catherine Pasquier. Paris: Éditions Convivium Lusophone (no prelo).