O grande vazio em mim será o meu lugar de existir.

(Clarice Lispector1)

Com a teoria psicanalítica de Freud e Lacan, o vazio recebe diferentes formalizações, nomes e consequências, recebendo um estatuto a ser considerado logo de saída. Com o precursor da noção de inconsciente, algo da repetição sintomática produzia movimentos circulares de idas e vindas de dor e não saber-dizer, fosse na carne, fosse nos vazios esburacados dos relatos dos sujeitos. O trombamento com situações em que algo ficava por ou sem ser dito, impedido de ser colocado em palavras de forma completa ou impossível de ter uma explicação certeira cristalizava uma regularidade a ser observada. De acordo com Mucida2:

Nessa direção podemos cunhar diferentes nomes que indicam seu encontro com esse conceito: barra ao sentido (1896/1977, p. 317-324), ponto nodal, núcleo patogênico, umbigo do sonho, ponto de fixação libidinal, resistência terapêutica negativa e rochedo da castração são alguns dos termos que definem na prática freudiana o real como impossível. Foi a partir disso que não se modifica e resiste que Freud fora obrigado a rever sua prática em cada momento, inventando maneiras de operar com o tratamento do mal-estar subjacente aos sintomas.

Lacan caminha de braços dados com esse Freud que se depara com o real e, ao longo do Seminário 7, propõe-se a discutir a ética da psicanálise, tomando o impossível como norteador da prática clínica. Dentre várias metáforas que mobiliza, há uma especialmente bonita: a do vaso de barro. Afirma que é preciso ouvir os gemidos do vaso nas mãos do oleiro, não como os religiosos o fazem, mas a partir da perspectiva de que o oco é o que sustenta o vaso em pé:

O vaso (...) um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como um nihil (...) E é por isso que o oleiro (...) cria o vaso em torno desse vazio com sua mão (...) a partir do furo.

(Lacan3)

A radicalidade de tomar esse furo na função de estruturar o vaso não é apenas ilustrativa, mas diz muito do humano compondo uma dialética antiga que o francês atualiza e amplifica:

É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante. (...) se o vaso pode estar pleno é na medida em que, primeiro, em sua essência, ele é vazio. Lacan4

Ou seja, aqui estão postas duas ordens de vazio: i. é preciso cavar o barro no torno, produzindo um buraco de onde nascerá o vaso, e ii. só é possível colocar algo dentro do vaso, porque ele possui esse buraco forçado pela mão do oleiro. Estruturante e funcional, o furo.

Todo o trabalho do oleiro e do ceramista esteira-se a partir do jogo dialético entre vazios e paredes, buracos e superfícies, furos e suportes que se colam, estendem e emendam. Toda peça de barro, para passar pelo processo da queima, precisa ter o oco no centro, a sustentá-la (Sousa5); e o difícil é lidar justamente com esse jogo de uma borda cujo recheio se ausenta, de uma parede que precisa ser erigida onde justamente lhe vai mancar o apoio. Quantos movimentos de espera do ponto do barro para que o corte e a subtração do centro sejam procedidos sem que a peça se perca!

O trabalho de Vilma Villaverde, artista argentina viva, é especialmente impactante e materializa o imperativo da presença do furo nos termos desse escrito.

Inicialmente Villaverde foi aluna de Mireya Baglietto, depois de Leo Tavella, dois grandes ceramistas argentinos, de cuja generosidade ela bebeu não apenas informações e conhecimento técnico, mas uma rede afetiva de trajetos de estudo, trocas e criação. O trabalho em diferentes ateliês, o mestrado sobre a obra de Tavella, a memória afetiva da artista na criação de peças de barro a partir de fotografias antigas da família, a interlocução com artistas de outros países, a participação na Associação Internacional de Artistas de Cerâmica, os vários prêmios acumulados e os cursos ministrados em diferentes lugares do mundo compõem uma vida interessante. Um fazer que instala o vazio durante e depois da criação artística, o que indica duas instâncias em diferentes tempos: i. a ocagem das peças para que possam ser queimadas e ii. o exercício de acoplamento de um objeto já pronto ao corpo de suas figuras. Em ambos, o vazio estrutura, sustenta e faz parte da obra.

Além de uma biografia consistente com relatos pessoais e entrevistas da artista, a tese de Santos5 destaca a metodologia de trabalho da artista:

O corpo em seu trabalho por vezes surge em partes fragmentadas, unidas com outros materiais pré-fabricados. A queima de seus trabalhos é realizada em 120 fornos elétricos, em seu atelier, ou em fornos locais em diversos países onde desenvolve suas obras. Para a coloração utiliza vidrados e engobes. Integra materiais industriais em sua arte, num exercício de assemblage.

Vilma passou a fragmentar o corpo humano em partes menores e a combiná-las com objetos do cotidiano de grande proporção, mantendo-os como metáfora visual do vazio. Algo falta e não pode ser completado, sempre deixando o buraco visível a operar efeitos no conjunto da obra. O pedaço ou a parte impossível de ser preenchida arrebata, porque indica a potência do vazio e o quanto ele faz parte do humano e do trabalho cerâmico. A mulher pensativa na escada, ainda que subtraída de tronco, pele, ossos e órgãos, resta de pé, e olha para um ponto inatingível.

Além de objetos do universo feminino (como máquina de costura manual) ou peças aleatórias de uso doméstico (como uma escada), privadas, bidês, partes de pias e assentos sanitários passaram a integrar suas obras, abrindo as portas dos banheiros para adensar a intimidade dos corpos e alargar o trabalho com os seus orifícios. Tais peças, descartadas pelo uso e sem valor para a indústria, ganham visibilidade plástica e passam a compor outras cenas para o corpo feminino, fazendo-os saltar para outros campos, no caso abaixo do dançar ou tocar:

Vilma então descobre no material inerte da indústria um elemento que amplia a força de expressão de sua obra. Ao utilizá-lo como ponte para conquistar uma maior escala, suscita novas possibilidades de leitura das formas que passa a conquistar. Santos7

Os corpos edificados pelo vazio passam a figura de modo distante do habitual, fora dos usos tidos como evidentes para os objetos que lhe são acoplados, ou seja, equivocam o objeto e a si mesmos. Deslizam para outros usos, constroem outras cenas:

Trouxe também corpos com vazios preenchidos por outros corpos, grupos de figuras conhecidas, a figura feminina sempre muito forte em sua poética. Os corpos começaram a ser deformados, trazendo outros discursos à imagem: críticas, ironias, movimentos. Garcez e Makowiecky8

O trabalho de Vilma, com rara beleza, consiste em que o vazio estruture a forma e ganhe corpo, no caso corpo de mulher em seus modos de estar, parir, costurar, pensar, maternar, dançar e tocar (aqui vale a polissemia do termo) a arte. Que preciosidade! Impossível não lembrar de Carlos Drummond de Andrade:

a ausência é um estar em mim.

Notas

1 Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H. 1a ed. Rio de Janeiro: Rocco, p. 147. 1964/2020.
2 Mucida, Ângela. Espaço da interpretação e inconsciente real. Stylus – Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 25, p.143-144, 2012.
3 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. ([1959 - 1960]). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 148, 2008.
4 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. ([1959 - 1960]). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 147, 2008.
5 Sousa, L. M. A. A matéria, o tempo, o vazio. Diário de Bordas – Psipolis.
6 Santos, E. R. A escultura cerâmica e a partilha do conhecimento nas obras de Vilma Villaverde e Vírginia Fróis. Tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual Paulista – UNESP no programa em Artes. São Paulo, p.120, 2018.
7 Santos, E. R. A escultura cerâmica e a partilha do conhecimento nas obras de Vilma Villaverde e Vírginia Fróis. Tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual Paulista – UNESP no programa em Artes. São Paulo, p.154, 2018.
8 Garcez, L. R. N.; Makowiecky. Corpo e memória em Vila Villaverde. Invisibilidades – Revista Ibero-americana de Pesquisas em educação, cultura e artes, N. 5, p. 33. 2013.