Recentemente assisti ao espetáculo A Última Sessão de Freud, peça teatral que percorre o circuito cultural por todo o país há cerca de 16 meses. Escrita originalmente por Mark St. Germain, conta a história fictícia do encontro entre o pai da psicanálise, Sigmund Freud, e o poeta americano C.S. Lewis em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial.
A peça se passa em Londres, onde Freud, após a anexação da Áustria à Alemanha Nazista, chegou para tratar um câncer na mandíbula. O pai da psicanálise recebe, então, a visita de Lewis, que se tornou famoso anos depois como autor de As Crônicas de Nárnia. A partir deste encontro, os dois personagens começam a discutir a vida, a morte, a religião e a psicanálise em uma troca de ideias tão intensa quanto cativante.
Na montagem brasileira, o médico, psiquiatra e psicanalista ganha vida através do ator Odilon Wagner, que em sua atuação captura a essência do pensamento e a personalidade de Freud de forma a convencer a plateia de que está diante do próprio. Muito mais do que apenas um drama de época, A Última Sessão de Freud proporciona uma experiência teatral envolvente e reflexiva, que instiga o espectador a refletir sobre suas próprias crenças e questões existenciais diante do confronto de ideias que determinam o tom e o andamento do espetáculo.
No seu escritório, o terapeuta não religioso recebe o autor C. S. Lewis, recentemente convertido ao cristianismo, para uma conversa que coloca Deus em discussão. Neste confronto, a encenação enfatiza a natureza reflexiva do debate e o choque de ideias destes dois grandes pensadores, sem apresentar necessariamente grandes inovações filosóficas. E é justamente o raciocínio apresentado no palco que sequestra a atenção do público. Em uma época de enganos e irracionalismos, a peça se torna uma contraposição ao tecer elogios à razão crítica, haja vista que até mesmo a fé de Lewis é examinada e defendida por ele à luz da racionalidade e do pensamento crítico. Sem dúvida, o campo da razão privilegia ainda mais a descrença que Freud sempre demonstrou em relação às explicações fantasiosas ou sobrenaturais do comportamento humano. Ainda assim, Lewis se esforça para justificar de forma racional a presença espiritual de Deus sem recorrer aos dogmas da Igreja. Mais um ponto pro espetáculo.
Apesar dos esforços, a disputa de ideias não tem um vencedor declarado. A discordância permanece invicta do início ao fim. Mas o que pode ser entendido como um anticlímax (do ponto de vista dramático), na verdade é a deixa perfeita para que essa discussão continue por muito tempo após os aplausos. Assim, ao deixar o teatro, me pego pensando: é possível que haja harmonia entre psicanálise e religião?
Para Freud, a religião era uma forma de expressão do inconsciente humano e das necessidades psicológicas individuais e coletivas. Ele via a religião como uma tentativa de lidar com as incertezas e ansiedades da vida, bem como com os aspectos inevitáveis da existência humana, como a morte e o sofrimento.
O autor argumentava que a religião tinha origem nas profundezas do psiquismo humano, nas necessidades emocionais e nos desejos inconscientes. Ele via a crença em uma figura divina como uma projeção dos desejos e anseios infantis por um pai protetor e poderoso. Essa figura paterna se tornava uma autoridade suprema, representando a segurança e o conforto que as pessoas procuravam. Além disso, Freud via a religião como uma forma de lidar com o sentimento de impotência e vulnerabilidade diante das forças da natureza e das situações traumáticas da vida. A crença em um poder divino oferecia uma sensação de controle e proteção, permitindo que as pessoas enfrentassem o desconhecido e o inexplicável.
Posteriormente a Freud, outros teóricos e grandes pensadores da psicanálise se arriscaram a tentar relacionar de forma mais positiva fé e ciência, como é o caso do pediatra e psicanalista Donald Woods Winnicott, que, em seus estudos sobre desenvolvimento dos bebês e sua relação com a figura materna, buscou estabelecer uma concepção de saúde mental, começando pelo desenvolvimento emocional primitivo, ao mesmo tempo em que tratava a religião como um possível espaço de saúde e criatividade.
Nesse sentido, Winnicott argumentava que o objeto transicional da criança é o ponto de partida de um processo contínuo ao longo da vida, manifestado na experimentação interna presente nas artes, religião, vida imaginária e trabalho científico-criativo. Ele sugere que os fenômenos culturais podem ser compreendidos como fenômenos transicionais, uma área intermediária entre o mundo interno psíquico e o mundo externo real. Nesse espaço potencial, que o autor chama de terceira área, ocorre a experiência cultural e o jogo criativo, nos quais a relação com a realidade é negociada por meio da criação artística ou da ritualidade religiosa.
Assim, compreendemos que a vida de cada indivíduo começa a se formar a partir dos contatos com outras histórias humanas, que são construídas por meio das interações com imagens e conceitos presentes nas perspectivas e dependências e é justamente nesse espaço de possibilidades da construção de relacionamentos que a religião encontra um ponto de diálogo com a psicanálise. Isso ocorre porque é por meio das suas relações que a criança encontra recursos para se inserir na cultura e, consequentemente, se humanizar adequadamente, desenvolvendo-se como um sujeito.
Dessa forma, arrisco dizer que a maior beleza da montagem brasileira da obra de Mark St. Germain está na forma com a qual escancara que o momento no qual nos deparamos com o outro, tão estranho e distinto de nós, é parte crucial do processo de constituição da nossa identidade.