O poeta Alexandre Bonafim, professor da Universidade Estadual de Goiás, no Brasil, doutor em Literatura Portuguesa pela USP, no seu oitavo livro de poemas, publicado pela editora Terra redonda, entrega ao leitor a fulguração e o êxtase de uma Noite de Dioniso, por meio de versos que guardam a poesia dos encontros amorosos.

Como sabemos, o deus grego Dioniso aproxima-se da embriaguez que abole a ordem e os limites do eu, ligando o ser humano às forças do caos e da fúria, assim como aos outros seres e à natureza, numa busca da unidade primordial. No entanto, além do dionisíaco, está também nos versos de Alexandre algo de Apolo, deus mitológico da medida e da luz, capaz de ordenar o mundo, após ter domado as forças naturais, buscando a superação do instintivo, por meio da lucidez e da serenidade.

O equilíbrio entre as duas forças contraditórias está anunciado já no poema de abertura, Nudez, em que o corpo nu, capaz de “clarificar/ os objetos”, pode adensá-los, entretanto, numa concretude selvagem, já que apresenta nudez feita de ângulos precisos e racionais, mas parecida com a fluidez e o improviso do peixe esguio, desenhada em geometria apolínea que se desdobra em vertiginosa febre dionisíaca, compondo o corpo capaz de purificar/ o pensamento em maciça precisão e, ao mesmo tempo, em cortante delírio.

Nudez

Uma nudez
capaz de clarificar
os objetos
adensando-os
em pura fantasia
concretude selvagem
intensa presença

Uma nudez
de ângulos precisos
perfeita
como prisma
peixe esguio
talhado em pedra
em sêmen

Um corpo
de contornos
em êxtase
jorro pleno do real
geometria
em vertiginosa
febre

Uma nudez
irmã gêmea
da sede
mãe de todo
o existente
pupila do fogo
espelho estilhaçado
pela luz das flores

Um corpo
despido até a ausência
capaz de purificar
o pensamento
concentrando-o
em maciça precisão
correnteza fixa
cortante delírio

A oscilação entre Apolo e Dioniso percorre os poemas do livro, marcando a sobreposição de contrários que encontram, na soma de opostos, o ponto de equilíbrio. Assim, o sol e a luz apolíneos sobrepõem-se à sensualidade do corpo feito de desvario – Um búfalo/ contra o sol/ o rapaz/ desnudo –, enquanto a entrega amorosa dionisíaca, paradoxalmente, é marcada pela nitidez do astro – Diante dos teus olhos/ tudo é sempre meio-dia.

Além disso, o jogo amoroso dos poemas do livro é pautado por Eros, já que o eu lírico é movido pela falta que pede a fusão dos amantes – Talhar teu corpo no meu sangue/ até arder no âmago do fogo/ a delicada luz do vinho –, assim como pelo desejo amoroso, essa mordaça/ que esfacela/ faca/ a cortar-se/ a si mesma/ flor esbelta/ e nua/ que se desfaz/ do perfume/ para esvair-se/ em cinzas. No entanto, ao lado do anseio carnal, está a constatação da pureza do corpo desejado, colocado, muitas vezes, num patamar sublime, beirando a santidade – Teus pés não tocam a terra/ Eles adejam sobre os roseirais –, sem que fique, no entanto, a salvo dos traços dionisíacos – Teus pés// Dois felinos/ violentados/ pelo vício.

A sobreposição de opostos está figurada ainda no grupo de poemas Ícaro, por meio da imagem da verticalidade que liga o céu e a água, já que em pleno voo/ [...] despenca Ícaro, cuja asa é âncora, sendo ao mesmo tempo angelical e humano em demasia. Ela está também na imagem do ser amoroso que, vertical e nítido, constitui-se, em muitos momentos, como uma espécie de mastro capaz de ligar o alto e o baixo, sustentando a união mítica de Uranos e Gaia.

Dessa forma, o livro de Alexandre Bonafim, por meio da conjugação de aspectos contraditórios, apresenta versos que se desenham entre o vinho e a luz, construindo, por meio da forma poética, a noite que, repleta de êxtase, guarda, paradoxalmente, o brilho e a fulguração, noite-dia que se constitui como momento propício para o encontro do eu e do outro, movimento que está na base da criação poética.

Notas

Bonafim, Alexandre. Noite de Dioniso. São Paulo: Terra redonda, 2019.