Entre outubro e novembro de 2019, iniciaram-se uma série de protestos políticos no Líbano, organizados por nenhum partido político nem religião. Os jovens juntaram-se para protestar contra taxas, corrupção e um país tantas vezes esquecido ou mesmo abandonado pela comunidade internacional. Em novembro, parti de Bruxelas para o Líbano, numa manhã cinzenta e apressada. O Yousef olhou-me em silêncio durante toda a viagem. Tínhamos ambos saído de uma cidade que era, para nós, uma casa comum e mais ou menos inventada.
Durante breves instantes, quebrados por bonitos silêncios, trocamos ideias e costumes do quotidiano de Bruxelas: os supermercados, os turistas, os jardins, o Canal. Sem medos e vergonhas, foi contando calmamente a sua história e o porquê da tão esperada viagem. Não via a família há mais de cinquenta e cinco anos. Tinha nascido no Líbano e conhecia bem o país, através do olhar. Apresentou-nos as montanhas e o mar de Beirute com alegria, com um apontar de paz, e talvez de saudades.
Viajava com calma, contando que era Palestiniano e que a sua família estava dispersa pelo mundo inteiro. Explicava ainda que, mesmo sendo muitos os que restavam no Líbano, não queria incomodar e, por isso, reservara um hotel. Entre as várias pausas e esclarecimentos, apontava para o chá e insistia "take your time". Pedia uma constante tranquilidade, enquanto sorria, e pacientemente explicava.
Não temia a situação, pouco falava de revolução ou mesmo das inúmeras e duradouras manifestações. Confiava no país que acolhe o maior número de refugiados per capita do mundo. Confiava numa revolução pacífica. Sabia porém da imensa desigualdade, da pobreza extrema, do sofrimento. Nessas alturas, ia olhando o céu através da pequena janela, e dizia que estava sol em Beirute, contrariamente a Bruxelas.
Da cidade que por agora deixava, contava viver perto do Canal, sem conseguir entender bem a beleza do lugar. Apenas aos poucos, e desfazendo os muros das várias nacionalidades que por lá passavam, ia dizendo "Bonjour". Confessava que começara a entender que vivia perto de um pequeno mar. E que, por isso, "No problem".
Mais tarde, no museu de Beirut, leio assim numa parede:
Há uma citação dos poemas de TS Eliot que eu gosto muito. Diz que ‘num ponto de um mundo em transformação, existe a dança’. Não sei exactamente o que é que essas palavras significam, mas sei que explicam como eu me sinto. Estou a tentar descobrir esse ponto, e ainda, onde está toda a vida e energia. Estou a tentar encontrá-las através da cor.
(Helen Khal, Museu Sursock, Beirute)
Quando tento escrever sobre o que vi no Líbano, gostava muito de conseguir pintar as saudades que trago, num quadro, reproduzir tudo em traços imensos e confusos. Através da cor. Desde que tenho saudades que quero muito aprender a desenhar. Como não consigo, continuo a escrever, entre a confusão das línguas e das palavras que não encontro. Ninguém nos ensina que a vida deve ter intensidade, que corremos entre memórias e um acumular constante de instantes. Escrito assim, nem parece ter sentido.
Ninguém nos ensina a processar, a dar sentido, e cor, a cada um, ou pelo menos alguns desses instantes. Talvez tudo fosse mais fácil nessa possibilidade, nesse breve encontro com os tempos e a vida. Não sei como escrever melhor porque nem me consigo bem lembrar de tudo. Ao contrário do que costuma acontecer nas viagens e na vida, não consigo rever tudo com aquela nitidez que me cega. Percebi, com tempo e alguma distância, que alguém tinha razão quando me disse, tantas vezes, que a luz demasiada cega. Demasiadas luzes, demasiadas cores.
Ter ido para o Líbano foi isso mesmo. Muitos quadros e galerias, muitas bandeiras levantadas, muitas estrelas ao deitar. E depois música, vozes, e silêncios profundos. Talvez seja possível, através de cada um deles, entender melhor o que é que nos move continuamente. Talvez seja possível entender que existem loucuras boas, por mais que estejamos muito pouco certos disso. Olho para trás e vejo aquela partida, de um dia para o outro, assim mesmo: uma loucura boa. Vejo um voo que não perdi por um milagre, vejo e revejo as múltiplas e fortes imagens. Desde as longas horas no aeroporto de Beirute, ao país que acolhe o maior número de refugiados. Per capita, com diferentes nomes, diferentes histórias.
A desigualdade é inexplicável, as pessoas na rua, os edifícios à beira mar. E depois os cafés, as ruas. E nelas o cansaço das pessoas, dos jovens, dos menos jovens. As manifestações. Estar num país em revolução é muito difícil de explicar. Estamos claramente a mais na paisagem, ao mesmo tempo que a tentamos compreender a todo o custo. Não foi possível, nem sei se será algum dia. Por mais que tragamos imensos livros, bandeiras ou revistas do National Geographic.
Cruzamo-nos com várias pessoas, com ideias diferentes ou mais ou menos parecidas. Escrevemos uma ou outra história. Do Yousef, do Michael, mais tarde do Mostafa. Fizemos até alguns amigos. No fundo, a vida é muito bonita e nas viagens ainda mais, mas desta vez houve qualquer coisa mais forte. Qualquer coisa do tal mundo em transformação, qualquer coisa da procura do ponto em que existe dança, em que existe energia e vida.
Continuo a encontrá-la nas pessoas, todos os dias. Continuo a procurar esse movimento, por mais difícil que seja cair na rotina. As cidades correm depressa demais, quando começamos a habituarmo-nos a viver nelas. Voltar para Bruxelas foi lutar contra essa rotina, ao mesmo tempo que somos obrigados a cair nela. Cada um tem as suas missões, e a minha neste momento não é viajar pelo mundo, nem aprender árabe, nem escrever histórias. Isto só por si dói muito.
Com o tempo, percebi que, por mais que os países e as fronteiras importem muito pouco, não sei se foi justo levantar com tanta certeza uma bandeira da qual estava pouco informada. Olhando para trás, sinto que a levantei pelo Youssef, que não via a família há mais de cinquenta e cinco anos. Pelo Michel, que tinha a filha e a mulher muito doentes. Pelo Mostafa, que não descansou enquanto não nos mostrou cada canto de uma tão bonita cidade. E pela Maria, que defende todos os dias que não há fronteira que mereça mais protecção que uma vida humana.
Talvez seja exactamente esse o movimento, a proteção de cada vida. Entre a confusão de todos os que passam por nós, muitos são aqueles que deixam pequenas grandes histórias, e levam partes da nossa também. Dentro da mais ou menos rotina, a busca contínua: É incessante, deixa-nos sem dormir. Onde está o centro da energia, da vida, da dança?