[Interior do Kremlin, dia]
Estamos na sala que contém aquela compridíssima mesa de reuniões. Putin está à janela e contempla a cidade coberta de neve e sob um sol pálido, que faz brilhar o leito gelado do rio Moscovo. Repara num objeto negro, quadrado, incrustado na superfície do rio. Pega no seu telemóvel e faz uma chamada, atendem.
Putin: É o Czar. Está um objeto suspeito no leito do rio. Pode ser uma bomba ou um posto emissor de informações da Nato. Investiguem.
De repente batem à porta. Entra, Lavrov, o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Putin guarda o telemóvel.
Lavrov: Dá licença, grande Czar?
Putin: Entra. Novidades?
Lavrov: Consegui uma audiência com o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Burkina Faso.
Putin: O que é isso?
Lavrov: Um país africano. Muito importante no âmbito internacional. Já mandei os comentadores da TV russa dizerem isso mesmo.
Putin: Senta-te.
Lavrov senta-se numa ponta da mesa e Putin vai sentar-se na ponta oposta.
Putin: O Zelenski disse alguma coisa?
Lavrov: (Não ouviu) Perdão?
Putin: (Alto) Perguntei se o Zelenski tinha dito alguma coisa.
Lavrov: A nós não, lamento.
Putin assente, digerindo a frustração.
Putin: O Serguei?
Lavrov: Está lá fora a ser revistado pelos seus guarda-costas. A esta hora já deve estar a vestir-se.
Batem à porta e espreita Serguei Shoigu, o ministro da Defesa.
Serguei: Dá licença, grande czar?
Putin, com um gesto da mão, manda Serguei entrar e sentar-se numa cadeira ao lado de Lavrov. Serguei obedece.
Putin: Estive a pensar e decidi acabar com a guerra na Ucrânia.
Lavrov: Qual guerra?
Putin apercebe-se da sua gafe:
Lavrov: Ah! Apanhei-o. Disse guerra em vez de Operação Especial.
Serguei ri de forma alarve. Lavrov também.
Putin: (Sério) Não acho piada.
Lavrov e Serguei suspendem imediatamente o riso, ficando ambos com esgares medonhos na cara.
Lavrov: Peço imensa desculpa, foi um reparo desnecessário e estúpido da minha parte.
Putin olha para os dois com alguma fúria no olhar. Mas Lavrov apercebe-se agora do que Putin disse.
Lavrov: Desculpe, disse acabar com a guerr… com a operação especial? Ouvi bem?
Putin: Sim. O plano saiu errado. Em vez de conquistar uma Ucrânia sem alma, criei a alma da Ucrânia, em vez de a desmilitarizar, militarizei-a, em vez de afastar do Ocidente, aproximei-a. Toda esta guerra foi um… toda esta operação especial foi um falhanço.
Serguei: Acho que a parte da desnazificação foi conseguida. Não encontramos lá nazis. Pelos menos não mais do que dentro da nossa amada Rússia.
Lavrov: Mas então… morreram milhares de pessoas para nada?
Putin: Pela nação.
Lavrov: Ah, claro.
Entra um oficial do exército cheio de medalhas ao peito.
Militar: Grande Czar! Uma equipa dos serviços secretos foi investigar o objeto avistado por sua excelência ali, no rio Moscovo. Era só lixo, um velho frigorífico enferrujado. No processo, morreram dois valiosos agentes que foram engolidos pelo gelo.
Putin: Só um frigorífico enferrujado? Que alívio. Podes sair.
Militar sai.
Putin: Onde é que íamos?
Lavrov: Nos milhares de mortos. E no país destruído pelas nossas bombas. E no estatuto de estado pária da Rússia.
Serguei: As poupanças que eu tinha guardadas num banco da Alemanha, em nome dum meu sobrinho, já nunca mais vou conseguir recuperá-las.
Putin: Estão a dizer que não vale a pena acabar a guerra.
Lavrov: O que é que o povo russo vai pensar? Que somos uns totós que nem uma guerra conseguimos ganhar?
Putin fica pensativo por um instante, a ponderar o que ouviu.
Putin: Tenho saudades das reuniões do G7, do G20… De ser recebido pelo presidente da França, dos Estados Unidos… De passar férias disfarçado de turista estónio nas praias do Algarve…
Lavrov: Eu tenho saudades de ser tratado pelos meus pares como uma pessoa decente. E dos acepipes das receções das embaixadas estrangeiras.
Serguei: Por outro lado, acabar com a guerra ia deixar o Prigozhin da Wagner pior que estragado. Isso era giro.
Putin: Não podemos ser egoístas. O que interessa é o povo russo, não os nossos desejos pessoais. Têm razão, o melhor é continuar a guerra.
Lavrov e Serguei olham para Putin com censura.
Putin: Operação especial, perdão…