O espelho é um objeto histórico e cultural, tornando-se mais disseminado a partir do século XIV.
De forma mais abrangente, este objeto aparece em muitos textos literários, dado o seu caráter mítico e, por vezes, cultural, como na história da Branca de Neve, ou mesmo em Harry Potter e a Pedra Filosofal, com o espelho de Ojesed. Em outras duas narrativas muito famosas, não é necessariamente o espelho, como objeto, que organiza o enredo, mas uma reflexão a partir da imagem de si, como no mito de Narciso, ou em O Retrato de Dorian Gray.
As nossas preferências literárias funcionam bem como digitais, são únicas. Alberto Manguel em A cidade das Palavras — histórias que contamos para saber quem somos, diz que “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos — uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia.” Essa consciência se dá através do que apreendemos de nossa relação com as obras. Ela, a literatura, funciona como um espelho, escolho esta metáfora, pois este objeto para mim não se configura como a descoberta de uma imagem, de uma vaidade, mas sim, da descoberta de si mesmo. Existimos, portanto, refletimos no espelho.
A literatura então, de acordo com o que nos diz Manguel, tem a mesma capacidade do espelho: mostrar que existimos. É o que chamamos de pacto entre o leitor e obra.
Reconhecemos na obra, não apenas traços de semelhança entre determinada personagem e nós mesmos; reconhecemos a nossa humanidade nas personagens das obras literárias. Reconhecemos os seus sentimentos, ações e possibilidades; prováveis situações humanas.
É possível pensar a narrativa literária através da palavra espelho, que pode ser apreendida como uma grande metáfora do reflexo, da imitação, da mimese, neste caso colocando-se uma das questões mais antigas da Literatura: a sua relação com o Real, ou, mais propriamente, como o conceito de Real.
Entretanto, espelho é também tudo aquilo que estabelece relações, sejam elas simétricas, assimétricas ou inversas. Tudo aquilo que cria o duplo, que supõe duas cenas, duas articulações, passagem para uma outra dimensão; sendo outra, entretanto, reflete a primeira, nunca se esgotando como pura repetição... Essas múltiplas imagens fazem-se no nível da fabulação, da história ou do enredo e também no nível do próprio discurso, nem sempre levado em conta pelo leitor, já fascinado pela ficção, já do outro lado do espelho, mas sem consciência de ter feito essa estranha travessia. Escolhido esse caminho, interessa pensar aqui sobre o espelho, não só como tema recorrente da literatura, herdeiro das narrativas míticas, entre as quais se destaca de forma privilegiada a história de Narciso, mas também espelho, como processo, jogo, maquinismo ou engenho...
O texto literário é, então, o lugar da confluência de reflexos, complexo de espelhos que refletem outros espelhos. O espelho pode ser plano, côncavo, convexo, pode inverter, deformar, transformar, sendo sempre um espaço de encenação, lugar da produção de um espetáculo.