Já se tornou mais do que rotineiro nos depararmos com a cena de animais abandonados pelas estradas brasileiras, sejam eles cães, gatos ou qualquer outro que não tenha uma função utilitária ou lucrativa para seus donos. O animal simplesmente estaciona no local em que foi deixado, à espera de que seu “dono” venha buscá-lo (ele só pode tê-lo esquecido ali) ou então corre atrás dos carros que passam na esperança de que seja a pessoa que espera com tanta ansiedade ou até mesmo um outro alguém que venha resgatá-lo. Este comportamento tampouco comove a maioria dos transeuntes, que passam incólumes, visto que invariavelmente não possuem em sua casa um “lugar” para acolher o animal.
Nosso amigo de quatro patas, em sua pureza e fidelidade a seu antigo dono continua confiando que o mesmo venha buscá-lo enquanto seu estômago se contorce e se retrai de fome e sede. Ele não sabe o que é o abandono e também não tem dimensão da maldade humana.
Lamentavelmente, ninguém o enxerga na condição em que se encontra. A dor do abandono carrega consigo o manto da invisibilidade. Não podemos nos esquecer, no entanto, que a despeito deste quadro geral, existem exceções e as ONGs de proteção animal surgiram porque alguém conseguiu enxergar através do manto e se deixou tocar. No entanto, este ainda é o trabalho de um beija-flor carregando em seu bico gotas de água na tentativa de aplacar o incêndio na floresta.
Infelizmente são poucos os que têm a sorte de serem resgatados. A maioria vai definhando aos poucos ou morre por ter sido infectado por alguma doença não tratada.
Em nossa cultura, em geral os animais são vistos como coisas que podemos descartar no momento em que nos convier. Assim sendo, eles não são donos de seus destinos e podemos fazer deles o que quisermos. O princípio que norteia este comportamento é que os mesmos são considerados seres sem sentimentos, sem noção do que é bom para si, ignorando-se ainda o fato de que são feitos da mesma matéria que os humanos. Desta forma, como coisas não estariam sujeitos às mazelas de um corpo físico. Ainda segundo esta linha de pensamento, os animais existem para nos servir. Estão a nosso dispor. Está na Bíblia inclusive.
Observando de outro ponto de vista, sabemos que o ser humano é capaz de fazer as mesmas coisas (ou até piores) com aquele que é exatamente o seu semelhante. Não vou me alongar em exemplos, mas o objetivo deste artigo é refletir porque algumas pessoas parecem ter um ‘coração de pedra’ e o que fazer diante disso. Ao utilizar-me da expressão ‘coração de pedra’, estou me referindo à falta de compaixão, sensibilidade, à ausência de empatia ou até mesmo um embotamento da capacidade de amar. Subliminarmente parece haver uma concepção de que é lícito e razoável amar somente os nossos iguais, ou mais especificamente, aqueles que carregam nossa carga genética, ou mais especificamente ainda, amar apenas a nós mesmos.
Sabemos que o despertar da consciência é um processo lento. E ainda mais quando se trata de sair de si e direcionar o foco de seu olhar para o outro. O egocentrismo é uma condição quase que universal do ser humano e não depende de nível de escolaridade, classe social ou poder aquisitivo. A capacidade de desviar a atenção do próprio umbigo, colocar-se no lugar do outro, olhar a vida da perspectiva dele, sentir sua dor, exercendo assim a empatia, ainda é um privilégio de poucos. A maioria das pessoas parece estar ainda em um nível muito rudimentar de consciência, preocupando-se em satisfazer suas necessidades básicas, ignorando o outro ser vivo que respira ao seu lado e tudo que para ele faz sentido.
A hierarquia das necessidades de Maslow é uma teoria da psicologia proposta por Abraham Maslow em seu artigo “A teoria da motivação humana”, publicado em 1943 na revista Psychological Review e pode ser para nós um bom parâmetro para nos elucidar acerca da escalada necessária para ampliação/elevação do nível de consciência. Assim sendo, Maslow define cinco categorias de necessidades humanas:
necessidades fisiológicas: respiração, comida, água, sexo, sono, homeostase, excreção;
necessidades de segurança: segurança do corpo, do emprego, de recursos, da moralidade, da família, da saúde, da propriedade;
afeto: amizade, família, intimidade sexual;
estima: autoestima, confiança, conquista, respeito dos outros e aos outros;
autorrealização: moralidade, criatividade, espontaneidade, solução de problemas, ausência de preconceitos, aceitação dos fatos.
Considerando que cada uma destas necessidades remete a níveis de consciência específicos, minha hipótese é que o gatilho que determina a passagem de um nível de consciência para outro seja o sentimento de impotência e o abalo ao ego e ao próprio narcisismo decorrentes da constatação de que por alguma razão não somos capazes de satisfazer nossas necessidades, ou seja, quando esbarramos nos limites da fragilidade humana e nas imposições da força do atrito em nossas vidas (tudo aquilo que nos causa sofrimento). Mesmo a consciência mais tosca em algum momento de sua existência sente-se impedida em seu desejo de ir além ou de fazer as mesmas coisas que sempre fazia. Quando nos damos conta, por exemplo, que, devido a imposição de alguma doença ou pelas próprias limitações causadas pela velhice, que não conseguimos ir ao banheiro sozinhos e que precisamos ser amparados por terceiros, alguma coisa muda em nossa autopercepção e na percepção do mundo ao nosso redor.
Sentir-se prisioneiro na cama de um hospital ou em seu próprio domicílio é uma condição única/ideal para se fazer um balanço de nossas vidas, isto porque, sujeitos às infindáveis horas onde tudo que se ouve é o ‘tic-tac’ do relógio, nosso pensamento vagueia independente da nossa vontade e nos traz invariavelmente flashes de cenas passadas que nos convidam a uma reflexão. Isto é suficiente para alquebrar os espíritos mais embrutecidos e os corações mais empedernidos, visto que é muito difícil que alguém não confesse para si mesmo: “Isto que eu fiz não foi legal!”. Assim, em algum clarão de sua consciência atormentada pelas dores de seu corpo físico e pelo remorso, incômodo visitante no negrume da noite de seu entardecer, possa então despertar para outros patamares de consciência.
A imposição da força do atrito, quer se apresente ela transvestida das mais diferentes formas, é pois um agente de mudança de primeira grandeza, visto que é algo sobre o qual não temos controle e nos obriga a baixar a ‘crista’, chegando à constatação na própria carne do famoso adágio: “Não somos nada!”. Lamentavelmente, do ponto de vista da noção de tempo de nós humanos, este é um processo lento e bastante dolorido de se conviver para quem já transita em degraus mais avançados de evolução. Normalmente, quem faz mal a outrem são pessoas mais arredias e “não precisam” de ajuda psicológica. Assim, vão continuar agindo à sua maneira até que a vida intervenha. Pois é sempre ela nossa maior professora. Todos nós passamos por aquilo que precisamos passar para os fins de nossa evolução. Existe uma sabedoria cósmica da qual é impossível se esquivar.
O que podemos fazer, entretanto, é acolher de forma humana e sensível quem está sentindo na própria carne a ação da força do atrito. Só assim, esta pessoa terá uma nova matriz, para que possa então engendrar-se a si mesma e renascer como um ser humano capaz de amar o próximo, valorizando e respeitando a vida em todas as suas formas. Corações empedernidos necessitam então de ‘calor’ para que possa operar-se a magia da catálise.
Vale lembrar que todos os seres vivos têm seu lugar no planeta e merecem viver com dignidade e respeito. Nós, os humanos, não somos donos de nada e não levaremos nada, já que tudo nos é emprestado. Nosso crédito são apenas e tão somente nossas boas ações.