Dessa vez não cheguei a perceber se era o Sol a desaparecer lá longe, muito longe, na bainha da moldura, entre o rio e o céu ou se era a luz da manhã a regressar, surgindo devagarinho como mais um dia nascido das brumas lilases, nascido das nuvens, uma aurora espantosa.
Sei que quando ali cheguei não era nem dia nem noite, nem manhã nem tarde, nem as horas existiam, nem sei se o tempo era tempo. Uma interminável fila de automóveis, estacionados uns atrás dos outros, formava uma barreira sólida e escura entre o ar existente e a muralha a escorregar para o rio. Também a escorrer pela muralha alguns casais entrelaçados, confundidos no musgo da pedra quase, quase a tocar a água com as pontas dos sapatos.
Eu tinha saído de casa a pensar que te ia encontrar, ou a ti ou a alguém no caso da tua ausência. Era amor que eu precisava. Podias ser tu, podias não ser. (…)
Palavras de Cristina Carvalho na apresentação editorial de Até Já Não é Adeus (Lisboa, Relógio d’Água, 1989), título que dialoga com a despedida de sua Mãe, Natália Nunes, nas Memórias de Rómulo de Carvalho/António Gedeão, Memórias que completou a pedido do próprio: "Não te digo adeus, a minha alma estará sempre contigo".
São palavras que parecem descrever e antecipar este momento em que a memória familiar se expande, alargando o círculo para nos dar lugar, para motivar este convívio de homenagem e evocação, de afectuosa convocação.
Nascida após a 1ª Guerra Mundial e falecida no final da 2º década do séc. XXI, Maria Natália Nunes (1921-2018) teve a sua letra, genologicamente diversa, soprada pelos grandes movimentos estéticos e de ideias da nossa contemporaneidade ao longo de seis décadas. Letra que dançou entre a criação (ficcional, dramatúrgica, poética, memorialista), a tradução de grandes autores (Balzac, Violet Leduc, Dostoievski, Tolstoi, Elsa Triolet, Roger Portal, Konstantin Simonov) e o ensaio (sobre Frei Pantaleão de Aveiro, Raul Brandão, Augusto Abelaira, José Cardoso Pires e Carlos Oliveira), com colaboração em revistas marcantes como a Seara Nova e a Vértice, ao mesmo tempo que cuidava, como bibliotecária e conservadora, da letra alheia, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e na Escola Superior de Belas Artes, mas, também, defendendo-a na Sociedade Portuguesa de Escritores (cuja última direcção integrou em 1965) e, depois, na Direcção da Associação Portuguesa de Escritores (1978-79).
A capas de Assembleia de Mulheres (1964, 1997) e de Vénus Turbulenta (1997) sinalizam 2 entradas de leitura na poética de Natália Nunes, onde a mulher se desenha a traço grosso, conferindo-lhe um lugar incontornável na afirmação da escrita feminina e na reivindicação do papel da mulher na sociedade, instituindo-a autora numa assembleia de outras como Irene Lisboa, Ilse Losa, Sophia, Maria da Graça Freire, Maria Judite de Carvalho, Agustina Bessa-Luís, Orlanda Amarílis, Isabel da Nóbrega, Fernanda Botelho, Luísa Dacosta, Ana Hatherly e Maria Gabriela Llansol, em especial.
Na primeira das obras em referência, Assembleia de Mulheres (1964, 1997), A Aldeia das Sereias (1942), de Paul Delvaux, oscila entre a sugestão de uma Europa sonâmbula do fim da guerra, perplexa e sem rumo, e o protagonismo da mulher que a personifica e se multiplica na espera e no sentimento de absurdo. Lisel Mueller dedicou-lhe o poema "Paul Delvaux, The Village of the Mermaids": “It is 1942; it is Europe, and nothing fits. The one familiar figure is the man in black approaching the sea, and he is small and walking away from us.”
Na segunda obra mencionada, a Vénus Turbulenta (1997) surge representada pela Jovem senhora com luvas (1930), de Tamara de Lempicka (1898-1980), cuja aba do chapéu é chamada a sombrear os olhos atentos num gesto sedutor.
São, afinal, duas faces da interrogação dos enigmas da vida: a mais sonâmbula e a mais vital. No fundo, essa busca embebe as ficções de Da Natureza das Coisas (1985) ou as d’As Velhas Senhoras e Outros Contos (1992), como exprimem os próprios títulos “Poderes Sobrenaturais” e “A Mulher Que Falava com as Plantas” ou, mesmo, “Simpatia ou A Força da Imaginação”. O questionamento que sublinha com a referência à “grande pergunta” como um bom título na Vénus Turbulenta.
Em ponto de fuga, está a infância revisitada em Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) numa à la recherche du temps perdu proustiana sobreimprimindo tempos e olhares, experiências e questionamentos vivificados pelos cinco sentidos, insinuando essa velha tradição representativa da existência humana e dos seus trajectos de iniciação/formação. Infância, época vibrante de plenitude na ligação à natureza, “viva” por isso, quase mítica de tão edénica na lonjura da rememoração:
Se estou a falar disto, não é porque se tivesse dado qualquer acontecimento extraordinário mas por causa daquela coisa que senti com tal intensidade que nunca mais a esqueci.
Nessa tarde de verão eu percebi que o mundo todo tinha vida e uma vida ardente, impetuosa, indomável. A mica faiscava na areia branca do jardim, as flores pareciam pequenos sóis à luz dum sol maior que iluminava a terra com um fulgor escandecido duma brasa e, pelos meus braços vermelhos do calor, roçava o corpo dos besoiros entontecidos que zumbiam e se introduziam, sôfregos, nas corolas das flores roxas da varanda. Quase que sentia o sangue circular de alto a baixo do meu corpo, veloz, quente, e essa quentura, provocava-me ímpetos de sair lá para fora e fazer gestos largos, sem propósito.
Apetecia-me ir para um campo muito vazio e correr à doida, arrancar plantas, cheirar flores, trincar frutos, espadanar na água até não ter mais forças e ficar depois, numa lassitude cálida, estendida no cimo dum monte, toda nua, debaixo do Sol...
(Horas Vivas: Memórias da Minha Infância, Coimbra, Coimbra Editora, 1952, p 61-62)
No fundo, tratava-se sempre da interrogação gerada na convicção da diferença irredutível entre o visível e o oculto partilhada com grandes autores do Cânone Ocidental. Autores como René Margritte, que lhe dedica uma série sob o signo d’A Grande Guerra (1964), onde sobressai o jogo de espelhos entre O Filho do Homem (1964) e a mulher de branco com mar ao fundo, figurações do masculino e do feminino cujos rostos são ocultados, respectivamente, pela maçã e pela flor, símbolos pregnantes do imaginário ocidental. Mas era, também, uma nova forma de ver (Bruno Zèvi), onde o imaginário filtra, cesaricamente, a relação com o real e se contrapõe ao olhar comum, como acontece no conto “Um dia”, de Assembleia de Mulheres (1964), entre as falas e os pensamentos entre parênteses subversores, diálogos que o não são de falas que se sucedem em incomunicabilidade ou de escuta entrecortada, em contra-canto irónico e, até, sarcástico:
…(Que tal a paisagem? Se vieste para ficar, hás-de ter esses mamarrachos diante de ti, toda a vida... Esse, que está por cima do teu lugar, já eu tinha na minha frente há seis anos... Há seis anos ou há oito, Vivi?, já nem sei…)
— Estes quadros, tão pesados, tão escuros, são um tanto ou quanto soturnos para servirem de elemento decorativo num gabinete de trabalho…
... (Um gabinete de trabalho! Ainda está com os olhos tapados, não admira. Oxalá ela não seja do género de... Não sei se pegue hoje nos púcaros, para «fazer ver», ou se... se comece já a... Ela esteve lá fora uns poucos de anos, tem coisas publicadas... Bom, mas, segundo consta, não são da especialidade, ela é de Biológicas. Em todo caso, cá tudo conta, e na nossa santa terrinha, ter estado no estrangeiro é um título de primeira ordem. Bem, por agora, calminha, Vivi. Aguardemos. Porque ao fim e ao cabo, «o que é doce nunca amargou»...)
(Assembleia de Mulheres, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, p. 11)
Natália Nunes percorre um ciclo iniciado com Autobiografia de Uma Mulher Romântica (1955) epigrafada por Rabindranath Tagore (1861-1941) sob o signo universalista e humanista, de ligação à natureza mais vasta e onde a memória se tinge de uma estranheza que a singulariza na tradição genológica: «Há só as tuas asas e o céu sem caminhos». Ciclo onde, de quando em vez, nos surpreende uma imagem inesperada, como, em Vénus Turbulenta (1997), a que evoca o nu licencioso e provocatório de Gustave Courbet *A Origem do Mundo *(1866): «Mas vocês bem sabem: de pernas abertas, o que nós mostramos é, de facto, uma pássara ou uma pachacha. Com seu ar estúpido, insisto, ninguém me tira esta ideia: o sexo feminino é uma espécie de careta parva, com uma expressão obstinada de espera, como a de um passarolo no ninho, a boca aberta à espera de alimento para engolir…» (Vénus Turbulenta, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, p. 259). Afinal, a *Vénus Turbulenta (1997) diferia, substancialmente da sua anterioridade iconicamente simbolizada na Vénus de outrora, fosse a que emergia na concha de um plácido mar, fosse a que triunfava no mar, fosse a que se alongava no horizonte, sempre distanciada pela bruma dos mitos, inacessível, intocável: figurava um novo tipo feminino, assumido corporeamente num quotidiano social, reclamando plena cidadania, representado pelo grupo das Lusitanas Heteras, moderna versão das antigas Ninfas do Tejo, que viajam em cruzeiros, numa escrita de revisitações paródicas pontuada de alusões subtis. Dessa Mulher Romântica à Vénus Turbulenta, podemos rastrear o itinerário da modernidade em 4 décadas de amadurecimento estético, de transformação autoral, das artes e das letras, itinerário simbolicamente sugerido, no plano individual, nos títulos do memorialismo desde Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952) a Uma portuguesa em Paris (1952), essa desejada cidade-luz das artes e das letras para onde convergiam os nossos autores e onde, no ano anterior, Vincente Minnelli e George Gershwin tinham feito bailar Gene Kelly e Leslie Caron (Um americano em Paris, 1951). Individual e colectivo entrelaçam-se inextrincavelmente na escrita de Natália.
Na abertura de Vénus Turbulenta, Natália Nunes põe em questão, através da personagem Vera Alexandrina, a problemática da escrita ficcional, em rigor, a do romance, demonstrando profundo conhecimento dos caminhos da literatura:
Ela, num abatimento: «De facto escrevi esses cinco cadernos. Mas acho tudo um disparate e lamento o tempo perdido.» Riu com amargura irónica e acrescentou: «Agora sou romancista!» Interrompi-a: «Por que não?»
— Simplesmente porque não sei fazer romances.
— Ora, Alexandrina, um romance, em última análise, como já tem sido dito, é contar uma história.
— Sabes melhor que eu, hoje já não se usa esse tipo de romance.
O que é preciso é construir jogos de tempo, usar de habilidades com discursos indirectos livres, alternâncias de narradores, confusão de personagens, sei lá... Ao passo que eu fui escrevendo ao sabor da minha memória, das minhas interpretações, e também das minhas fantasias. E não calculas como tantas vezes, utilizando a educação científica, tive de refrear os meus ímpetos narrativos e, paulatinamente, entregar-me a uma analítica minuciosa, aprofundante, progressiva. Mas agora pergunto a mim própria se poderei apresentar em público este escrito como um romance, uma obra literária?
— Mas quem te irá dizer isso, Alexandrina?
(Vénus Turbulenta, Lisboa, Relógio d’Água, 1999, p. 10)
No romance, responde-lhe uma personagem. Aqui e agora, respondemos-lhe nós com esta evocação e homenagem.