Preciso de munições, não de uma boleia.

(Zelensky)

L’Europe est menacée, l’Europe est divisée, et la plus grave
menace vient de ses divisions.
/.../.
Aucun de nos pays ne peut prétendre, seul, à une défense
sérieuse de son indépendance.
Aucun de nos pays ne peut résoudre seul les problèmes que lui
pose l’économie moderne.
/.../.
L’heure est venue d’entreprendre une action qui soit à la mesure
du danger.

(Denis de Rougemont, Message aux Européens)

No horror da guerra espectacularizada nos écrans desde 24/2/2022, do genocídio rastreado por filmagens de telemóveis, o coração da Europa explode e o nuclear é um dos cenários do seu fim.

Os séculos XX-XXI foram de profunda transformação de uma Europa imaginada princesa raptada por Zeus e por ele entronada para iniciar o ciclo imperial e viver outras experiências (itinerário sinalizado na ilustração cartográfica) até se confrontar com a perspectiva surpreendente da sua morte e da sua fractura pel’“a cortina de ferro” (Churchill, 1946). Do mito às trincheiras das duas Guerras Mundiais e destas à Guerra Fria atravessada por icónico 007, até aos sonhos de paz e união abafando os fantasmas da morte e as profecias apocalípticas (Nostradamus, Baba Vanga, etc.).

Dilacerada por duas guerras sangrentas, crises fracturantes, a Europa surge como a Alice no País das Maravilhas e no outro lado do Espelho que Lewis Carroll nos oferece em busca de si.

No mosaico instável dos títulos, podemos observar alguns traços dessa protagonista-continente que nos leva como nau de Ícaro, de Loucos, de Noé… hoje, mais jangada de pedra (Saramago) atraída para o fundo. E Portugal é, dos velhos mapas à poesia, a sua camoniana “cabeça” ou o pessoano “rosto”, um “pensador” (Rodin) vertido em “Desterrado” (Soares dos Reis, 1872).

Uma aventura inacabada (Zygmunt Bauman) espelhada no incipit da sua ensaística, a Europa corporiza geograficamente a origem do Ocidente beirando o mar, respondendo à Esfinge que a fita do norte de África e observando o sol a declinar no horizonte. Da Alvorada à Decadência (Jacques Bazun), da ascensão (Jack Goldstone, Anderson) ao triunfo na razão, ciência e liberdade (Rodney Stark), do encantamento ao desencantamento (Max Weber, Marcel Gauchet, Eduardo Lourenço, José Eduardo Franco), a Europa-Ocidente viveu uma aventura espiritual (Jacob Bronowski e Bruce Mazlish, Rob Rieman), foi uma ideia (George Steiner) nascida dos sonhos e das visões (de Constantino a Afonso Henriques) organizada pela religião cristã (Paul Veyne, Tom Holland, Catherine Nixey) conducente ao domínio (Ian Morris, Tom Holland), desde os reinos desaparecidos (Norman Davies) às nações (Adam Smith, Renan, Benedict Anderson, Eric Hobsbawm, Patrick Geary, Guy Hermet) e aos impérios (Edward Gibbon, Eric Hobsbawm, J. Burbank e Fred Cooper), em progressiva globalização (Roger Crowley, John Darwin) entre guerra e paz (Raymond Aron), com fronteiras mutáveis e, progressivamente, invisíveis (Guilherme d’Oliveira Martins), mas, daí, a uma deriva (Slavoj Žižek), encruzilhada (João Rosa Lã, Bruno Ferreira Costa), beirando o abismo (Tony Phillips), até que enfrenta a sua decadência (Husserl, Niall Ferguson, Dambisa Moyo, Michel Onfray), queda (Kishore Mahbubani), divisão (Jürgen Habermas, Mark Lilla, Ian Kershaw), desmoronamento (Pierre Thuillier) ou crise (Paul Hazard, René Génon, auto-questionando-se (Philippe Nemo, Roger-Pol Droit) em convivialidade (George Steiner) ou em ‘liquefacção’ (Zigmunt Bauman), vislumbrando ou temendo o seu fim (Hervé Kempf, Francis Fukuyama), morte (Douglas Murray), entre o amor que a dominou (Denis de Rougemont) e o ódio que lhe têm (Jean Ziegler), o suicídio (Jonah Goldberg) ou uma estranha morte (Douglas Murray), quebrado o espelho (Jean-Louis Vullierme), na vertigem do colapso (Robert Kurz, Jaret Diamond, John Casti, Dan Carlin, Viriato Soromenho-Marques)… como Prometeu (Eduardo Lourenço, Zigmunt Bauman, Vasco Graça Moura), ainda empunhando O Fogo Primordial (Andrés Ríos) para o dar aos (outros) homens, mas obtendo já deles uma imagem sua marcada pela fragilidade, velhice, depauperamento e impotência, que a faz regressar à velha questão da Esfinge em busca de novas respostas… “lieu de mémoire” (Steiner, Miguel Real) em busca de si (Rogério Martins, Marc Nouschi) e a repensar (José Eduardo Franco, Teresa Pinheiro, Beata Elzbieta Cieszynska) por nós, europeus a quem Miguel Real, dedica o réquiem de uma antecipação científica (O Último Europeu, 2015) e de um último grande amor (O último minuto na vida de S., 2007). A peça Europa, Europa, de Miguel Real e de Filomena Oliveira, recondu-la aos 12 trabalhos de Hércules fazendo-nos reflectir sobre as suas perspectivas actuais, como Manuel Sérgio assinala ou como Fausto simboliza, na perda da sombra e do reflexo onde o sentido histórico se condensa.

Serviu esta moldura para nos conduzir ao que olhamos com assombro nos media: a invasão da Ucrânia. Em tempo real ou com mínimo diferimento.

A Retórica denuncia o quadro abrangente e a atitude e disposição das partes: de um lado, o Ocidente “pede” (que Putin suspenda a guerra, retire o seu exército, dê uma oportunidade à paz…), sente “indignação”, “condena” e declara “preocupação”; do outro, Putin “ameaça”, “afirma”, “ condena” e “continua”. A fragilidade vs. a força: a desproporção Ucrânia vs. Rússia parece repercutir-se na que opõe o Ocidente à Rússia. O sentimento de impotência exprime-se, também, na sistemática afirmação de que a força é comandada pela loucura e, mesmo que ganhe a guerra militar, perderá em muitos planos. O Monstro foi engordando ao longo de um século sem que ninguém o levasse a sério (Durão Barroso) ou o travasse, corporificando-se, por fim num homem talhado em pedra: Putin, Violador cinicamente assumido da Ucrânia-Bela Adormecida em diálogo com Macron.

Na verdade, sem tecto entre ruínas (na expressão de Augusto Abelaira), Volodymyr Olexandrovytch Zelensky surgiu, afirmou-se e mantém-se como novo herói, infatigável na sua luta pela Ucrânia, lavrando a ouro o seu lema: “Preciso de munições, não de uma boleia.” Na odisseia da guerra, não precisa de Homero: conseguiu o feito de simbolizar a nação que defende e de conquistar a admiração mundial, a empatia dos povos, o aplauso dos parlamentos. Na tragédia do enfrentamento da morte, entoa o lamento pelos seus: "A Ucrânia foi deixada sozinha na guerra contra a Rússia.". No lirismo da vida, afirma o amor familiar junto a si.

Bastaria isso, esse herói que, a cada avistamento, confessa com naturalidade não saber se será o último, para nos fazer o réquiem por uma Europa impotente para salvar um povo do genocídio progressivo. Mas há mais: todos os que correm para essa nação debaixo de fogo, todos os que, corajosa, abnegadamente, simplesmente, se propõem morrer por ela numa lição ao mundo são uma legião de heróis. Ave, caesar, morituri te salutant.1

Face a esta legião de heróis liderados por um super-herói surpreendente, toda a comunidade política internacional, do Ocidente à Rússia, parece estar muitos níveis abaixo, apenas a gerir um genocídio, por impotência e receio de uns, por loucura obstinada do outro: mesmo os corredores humanitários (não respeitados pelos invasores e “ardil” repetindo o da Chechénia, como previsto) e as ajudas fraccionadas, face à inexorabilidade do esmagamento de um povo, não são mais do que crónica de uma morte anunciada. As destruições não têm equivalência nos pacotes de ajuda e, minuto a minuto, notícia a notícia, toca um sino por todos nós, no réquiem pelo sonho de uma noite de verão: o de um Mundo de Paz e de Fraternidade.

Como moldura e pano de fundo, a guerra entre a desinformação (Putin) e a informação (Ucrânia, media internacional no local, redes sociais) cenariza outras hipóteses2, multiplica o conflito. Pontos luminosos ocorrem emocionadamente nesse teatro de sombras: desde os rostos das crianças, os casos de pais que tentam acalmar os filhos com vídeos tik-tok ou com afirmação de que estão lá fora a ‘atirar aos pássaros’, passando pela comovente tentativa de defender o património monumental com sacos de areia, numa versão actualizada do mito de Sísifo, até à mais insólita, como:

Num vídeo que se tornou viral nas primeiras horas do conflito, uma mulher ucraniana repreende um soldado russo dizendo-lhe que guarde sementes de girassol no bolso ‘para que pelo menos os girassóis cresçam quando todos vocês se deitarem aqui’.3

No pesadelo da vigília, algumas perguntas que nos dominam:

  1. Como é possível que, face a um óbvio crime contra a humanidade, com genocídio dos que fogem e dos que ficam, independentemente da idade, género e estatuto civil, com destruição maciça e estratégia de ‘terra queimada’ visando que ninguém tenha casa para voltar, com risco de deflagrações em estações nucleares, a humanidade não se reúna para o travar, mas tão só para gerir o processo e mantê-lo nas suas fronteiras?

  2. Como é possível que, anunciada a invasão pelos serviços de informação, os políticos ocidentais responsáveis não tivessem preparado um plano de ‘bloqueio’ do ataque just in case para mais pronta e decisiva implementação? As sanções chegam em pacotes num “para já” e/ou “por enquanto” (até o bloqueio no SWIFT foi de 70%, apenas a sete bancos russos, exceptuando o maior banco russo, o Sberbank), sempre para aplicação adiante, constituindo, afinal, aviso a Putin e aos oligarcas permitindo-lhes tomar medidas para minorar os efeitos… Putin avança e mata massivamente, enquanto os ocidentais reúnem, debatem, deliberam, telefonam e se confrontam com a inamovível decisão de Putin e dos seus…

  3. Na corrida contra o tempo de um povo que se tornou um exemplo de coragem e dignidade na sua luta pela sobrevivência, as previsões são, sistematicamente, de que Putin “já não pode recuar” e de que “tudo vai piorar ainda”. E o Ocidente pondera próximo pacote de agravamento das sanções… sucessivamente, até que deixe de existir povo ucraniano?…

Na Rússia, o povo manifesta-se contra a guerra e sofre as consequências disso com a prisão e/ou o desaparecimento: a ativista Elena Osipova, sobrevivente do cerco a Leningrado (II Guerra Mundial), e crianças de 7 a 11 anos que colocaram flores junto à embaixada da Ucrânia em Moscovo são símbolo disso.

Todos os povos pagam a peso de ouro políticos que os representem, instâncias nacionais e internacionais, agências de informação garantindo informação atempada e forças armadas dissuasoras. A esperança é de que, concertadamente, evitem e/ou resolvam crises graves, enfrentem e vençam a Rainha da Noite (Flauta Mágica). Ora, neste caso, além dos antecedentes de Putin e da afirmação da sua estratégia de recomposição do bloco soviético (mesmo antes do discurso de 25 de abril de 2005 no parlamento de Moscovo), ouve informação, mas os políticos e as instâncias internacionais foram lentos e ineficazes e a EU não tem estrutura defensiva capaz de impor a paz, houve informação, mas os políticos e as instâncias internacionais foram lentos e ineficazes e a EU não tem estrutura defensiva eficaz para impor a paz. A quem cabe a responsabilidade? Que Nova Ordem Internacional? Para onde nos encaminha este ponto de mutação (Fritjof Capra)?

Coreografando a Europa bem mais Lacrimosa do que a dos velhos mapas, evocamos a Melancholia (Albrecht Dürer, 1514) europeia, o Réquiem (1791), de Mozart, e a carta de Rougemont aos Europeus (1970).

Será que alguma Flauta Mágica (Mozart, 1791) conseguirá reerguer-nos?

Et ce que nous voulons, c’est une union d’Etats libres, dégagés
de toute servitude, sauf de la plus sainte, celle de l’amour de
l’humanité, cet amour qui a pour symbole la paix.

(Denis de Rougemont, Message aux Européens)

Referências:

1 Na lista “PAX RUSSA”, com ‘feitos’ da Rússia que circula nas redes sociais e cuja verificação e heterogeneidade são irrelevantes, pois menciono-a como sinal de indignação colectiva, registam-se nos séc. XX e XXI, dentre muitos outros: Guerra Soviético-Ucraniana (1917-1921), deskulakização (Rússia Bolchevique e União Soviética, 1917-1933), Terror Vermelho (Rússia Bolchevique, 1918-1922), intervenção na Guerra Civil da Finlândia (1918), Guerras Russo-Lituana (1918-1919), da Independência da Estónia (1918-1920), da Independência da Letónia (1918-1920), Polaco-Russa (1919-1921), anexação da Íngria Finlandesa (1919–1920), invasão e ocupação do Azerbaijão (1920), da Arménia (1920), da Geórgia (1921), repressão da Karélia (1921–1922), Sistema do Gulag (1923-1961), coletivização forçada (URSS, 1927-1940), deportação dos Íngrios Finlandeses (União Soviética, 1929-1944), Holodomor (Ucrânia, 1932-1933), Grande Terror (União Soviética, 1936-1938), invasão e ocupação da Polónia (1939-1941), Guerra de Inverno (tentativa de invasão da Finlândia, 1939-1940), massacre de Katyn (União Soviética, 1940), pilhagem de artefactos culturais e infraestrutura industrial durante a ocupação soviética da Polónia e da Alemanha Oriental (1940-1947), ocupação da Bessarábia e Bucovina do Norte (1940-1941) e dos Países Bálticos (1940-1941), supressão da Insurgência da Tchetchénia (1940-1944), deportações forçadas da Bessarábia e Bucovina do Norte (1940-1951), Guerra da Continuação (Segunda Guerra Soviético-Finlandesa, 1941-1944), massacre dos prisioneiros de guerra pelo NKVD (União Soviética, 1941), deportação dos Gregos Pônticos (União Soviética, 1942-1949), dos Calmucos (União Soviética, 1943), dos Tártaros da Crimeia (União Soviética, 1944), dos Turcos Mesquécios (União Soviética, 1944) e dos Bálcaros (União Soviética, 1944), Operação Lentil (limpeza étnica da Tchetchénia e da Inguchétia, 1944), massacres de civis durante o cerco de Budapeste (Hungria, 1944-1945), ocupação da Roménia (1944-1958), campanha de violações de mulheres (Polónia e Alemanha, 1945), caça ao Homem de Augustów (Polónia, 1945), Bloqueio de Berlim (Alemanha Ocupada, 1948-1949), oposição ao Plano Marshall (1948-1951), massacres de 9/Março/1956 (Geórgia) e de Novocherkassk (Rússia Soviética, 1962), repressão dos Protestos de Poznan (Polónia, 1956), intervenções na Hungria (1956) e no Afeganistão (1979-1989), supressão dos Irmãos da Floresta (Países Bálticos, 1945–1956), repressão das Manifestações de Yerevan (Arménia, 1965), Operação Danúbio (Invasão da Checoslováquia, 1968), repressão dos Protestos de Dezembro (Polónia, 1970), da Sublevação da Lituânia (1972), dos Protestos de Junho (Polónia, 1976) e das Manifestações da Geórgia (1978), Lei Marcial na Polónia (1981-1983), tragédia de 9/4/1989 (Geórgia), Janeiro Negro (Azerbaijão, 1990), guerras da Tchetchénia (1994-1996 e 1999-2009), do Daguestão (1999), da Inguchétia (2007-2015), invasão da Geórgia e Ocupação da Ossétia do Sul e da Abecásia (2008), anexação da Crimeia (2014), intervenção em Donetsk e Lugansk (Ucrânia, 2014)… agora, em 2022, a Ucrânia.
2 How Putin Is Losing at His Own Disinformation Game in Ukraine.
3 How Putin Is Losing at His Own Disinformation Game in Ukraine.
4 “Os primeiros avisos de que tal coisa poderia acontecer chegaram à Casa Branca em outubro por meio de reuniões secretas da equipe de segurança nacional. A confusão da retirada das tropas americanas do Afeganistão era muito recente, assim como o conflito decorrente do acordo militar sobre desenvolvimento de submarinos assinado com o Reino Unido e a Austrália sem informar os aliados europeus. Biden então tentou conter as suspeitas europeias e optou por compartilhar as descobertas de inteligência com seus parceiros do outro lado do Atlântico (a Alemanha e outros estados da UE que são altamente dependentes do gás russo pegaram as informações e agiram de acordo); e com a opinião pública depois. Depois disso, ele reforçou a quantidade de ajuda dos EUA à Ucrânia. /…/ Em 28 de janeiro, funcionários do Pentágono alertaram que a Rússia tinha plena capacidade militar para invadir todo o país, com cerca de 130.000 soldados na fronteira ucraniana – um número inédito desde os dias da Guerra Fria. “Existem várias opções disponíveis para [Putin]”, disse o secretário de Defesa Lloyd Austin. “Incluindo a tomada de cidades e territórios significativos” bem como “atos políticos provocativos como o reconhecimento de territórios separatistas”. E também avisam que Putin não fará senão potenciar o seu ataque, pois não consegue conceber uma derrota.