Para António Damásio a consciência é a chave para uma vida examinada; o que nos permite desenvolver um interesse por si-mesmo e pelos outros (Damásio 2000: 24).
Na sua obra, O sentimento de Si, confirma que o leitor é não só espectador das coisas imaginadas, proprietário das coisas imaginadas e actor potencial sobre as coisas imaginadas e tudo isto terá que ver com o modo como nós sentimos o que conhecemos, isto é, com o nosso ser e estar-no-mundo ricoeurianos. Mas sentir leva-nos até ao mundo das emoções, mundo esse que é inseparável da ideia de castigo, recompensa, prazer ou dor, como aliás veremos mais tarde, quando analisarmos o conto de Sophia “Saga”.
De facto, as emoções são inseparáveis da ideia de bem ou de mal, logo são originalmente éticas e segundo Damásio será a consciência que nos permitirá conhecer os sentimentos e que “a emoção permeie o processo do pensamento pela mão do sentimento”. Por outro lado, e confirmando a importância que Ricoeur atribui à linguagem, Damásio diz-nos que desde a maior parte dos ingredientes da consciência, desde os objectos até às inferências, tudo isto pode ser traduzido em linguagem; o que quer dizer que a linguagem contribui grandemente para uma forma superior de consciência, que na linguagem do autor equivale a uma “consciência alargada”. E de facto, mais uma vez revemos Ricoeur e a sua postura relativamente à importância da linguagem como tradução; de ser capaz de dizer de uma outra forma, de traduzir os pensamentos em palavras e frases; a sua capacidade de exprimir construções imaginárias, possuindo um “germe ético” em si própria.
Ao longo de O Sentimento de Si, o leitor de Ricoeur revê a cada passo o filósofo autor de Soi même comme un autre, a intertextualidade é extrema ao longo das páginas 154- 157, quando Damásio se detém no “leitor”, visualizando-o como tradutor e um tradutor de si próprio para si mesmo. E, de súbito como o próprio autor afirma “as coisas ficaram mais claras, a consciência passou a consistir numa construção de conhecimento acerca de dois factos: o facto de que o organismo está envolvido numa relação com um objecto, e o facto de que o objecto nessa relação está a causar uma modificação no organismo” (Damásio 2000: 161). Se encararmos o objecto como um livro; um conto literário seleccionado para uma ocasião específica, em que a atenção do leitor é dirigida para ele; aí o ‘objecto’ valoriza-se em relação a outros, torna-se mesmo parte da relação com o organismo no qual e ao qual isto está a acontecer, permitindo ao Si mesmo tornar-se Outro.
O leitor encontrar-se-á deste modo perante o processo de “ser modificado”. Teremos assim um “Si transitório” para além do “Si autobiográfico”, por outras palavras aquilo a que Ricoeur apelidou de “eu viajante” e “eu ancorado” (Ricoeur 1990:67). É que para além do desenvolvimento de uma memória autobiográfica, que diz respeito ao nosso passado e ao nosso desejo de futuro, nós podemos viver e transformar este agregado memorial através das nossas experiências do quotidiano, do nosso conhecer e do nosso sentir. Será essa expansão que vai, por sua vez, permitir que ao ler uma história, mais do que uma narrativa seja criada em simultâneo, pois nós interagimos enquanto leitores, quer com a nossa memória, quer com a nossa imaginação. A este respeito Ricoeur sublinha na seu recente livro La mémoire, L’Histoire, L’oubli (2000: 5) que
C’est sous le signe de l’association des idées qu’est placée cette sorte de court-circuit entre mémoire et imagination: si ces deux affections sont liées par contiguité, evoquer l’une – donc imaginer – , c’est évoquer l’autre, donc, s’en souvenir...
Atentemos, pois, na própria natureza da linguagem. Palavras e frases referem-se a entidades, acções, acontecimentos e relações. Palavras e frases traduzem conceitos e por sua vez os conceitos consistem numa ideia do que são as coisas, as acções, os acontecimentos e as relações, o que quer dizer, segundo Damásio, que aqueles precedem as palavras e as frases na experiência diária de cada um de nós. Tudo isto para nos relembrarmos do que Ricoeur afirmou acerca da pré-estrutura narrativa que governa a própria vida quotidiana. Como nos diz Damásio “contar histórias precede a linguagem... a construção inteira do conhecimento, desde o simples ao complexo, desde a imagética e não verbal até ao verbal e literário, depende a capacidade de cartografar aquilo que acontece ao longo do tempo”. Mas se nós cartografarmos com outra mais valia aquilo que possui um elevado conteúdo emocional?
Será esse facto que nos vai ajudar no processo da nossa aprendizagem durante a vida, porque iremos recordar esse facto com muita maior consciência? Será que a consciência começa por um sentimento? Será que ao sentir o outro de mim mesmo adquiro uma maior consciência de mim? A este propósito não esqueçamos a máxima pessoana Sentir, sinta quem lê!, pois tal como Ricoeur o concebe, um texto significa uma abertura para o texto como um outro meu, como um meu diferente, como um texto que pode dizer algo que não sei, algo que não conheço e até algo que me incomode e desconcerte. Tudo fica preso ao meu imaginário e a alteridade confunde-se comigo mesmo.
O texto abre um mundo de indagações, inquietações e respostas para o leitor e isso tem que ver, como afirma Damásio com a “ideia que cada um de nós elabora de si mesmo”, com “a criação da pessoa que nós imaginamos ser a cada momento “com “ as memórias dos cenários que concebemos como desejos, anseios, metas e obrigações...” e que “exercem uma influência sobre o si de cada momento”, isto é por outras palavras, o que Ricoeur afirma na sua obra mais recente “la mémoire, réduite au rappell, opére ainsi dans le sillage de l’imagination”; e retomando Damásio, há como que uma revisão das memórias das nossas experiências que está constantemente em curso e por isso a nossa fecunda imaginação será capaz de preparar “múltiplos rascunhos” para o argumento da nossa vida; sendo que, em determinadas circunstâncias, podem emergir dentro de nós certos aspectos de certas personagens que bem conhecemos. Aqui teremos talvez o que Ricoeur chama “la mémoire de l’imagination” (Ricoeur 2000: 644).
Em jeito de nota gostaria de fazer realçar que Damásio, em O Sentimento de Si, utilizou 40 vezes a palavra “imaginação” e/ou o verbo imaginar e utilizou 11 vezes a palavra “interpretação” e/ou o verbo interpretar.