Este artigo é especialmente destinado àqueles cuja juventude ficou perdida em alguma curva do caminho e que por causa disso, cultivam uma sensação dolorida de nostalgia como se tivessem sido roubados sem perceber, mas também aos jovens que não sabem o que lhes espera e que vivem o momento presente como se fosse eterno.
Vivemos melhor quando estamos conscientes de que a vida, o tempo e tudo o que nos é mais caro e precioso, sutilmente escoa pelos vãos de nossos dedos e nada podemos fazer para segurá-los ou mantê-los junto a nós.
Assim se dá com a perda da beleza de nossos corpos físicos na juventude. Com a passagem do tempo, enquanto a Lei da Entropia vai entrando em ação, nossos corpos vão lentamente se degenerando e sofrendo uma metamorfose. Estou falando do vigor dos músculos, da harmonia dos traços, do viço da pele, da acuracidade visual, da agilidade de pensamento, da memória afiada e tantos outros atributos que compõem o estado transitório da juventude e que já não são mais os mesmos...
Uma mulher de cabelos cor de prata a quem chamaremos Aretha se espanta ao olhar no espelho e contemplar sua nova cara de velha. Também se sente desconfortável toda vez que é chamada de “senhora” ou “dona”.
Ainda ressoam em seus ouvidos ecos de palavras, sensações e experiências vividas em um passado para si nem tão longínquo assim... Naquele tempo, quando se olhava no espelho, via um ‘rosto qualquer’. Ela costumava ouvir, entretanto, constantes referências à sua beleza física. Aretha sempre argumentava que “beleza não se põe na mesa” ou o que importa é a “beleza interior”. Na realidade, quando jovem, nunca valorizou ou percebeu sua beleza física, enaltecendo em seu lugar os atributos e as virtudes da alma.
Na verdade, Aretha não sabia o que significava ser bela em sua cultura - a importância e os desdobramentos disso - e também não possuía esse conceito nem para si mesma. Ela somente se deu conta de que algo estava mudando quando deixou de atrair a atenção ao transitar pela rua, momento em que passou a ser um ‘rosto qualquer’ para a multidão, ou quando foi a suas fotos antigas e notou que irremediavelmente havia perdido algo valioso. Aretha começou então a fazer repetidas consultas ao espelho para se certificar de detalhes aqui e ali em seu rosto. Foi então que se lembrou com tristeza daquela clássica pergunta da rainha má ao espelho, na fábula de Branca de Neve:
Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?” O silêncio que ‘ouviu’ em seguida, corroborado pelo abatimento da imagem que visualizava lhe fez sentir dolorosa angústia.
Por que esta crise de vaidade de repente para quem sempre cultivou os valores do espírito? No passado, Aretha podia se dar ao luxo de desdenhar de sua beleza já que a possuía e se vangloriar dos valores do espírito em uma época da vida em que os mesmos não estão em alta. Ela secretamente sabia que era bela e se sentia lisonjeada com isso. Deixou-se então guiar pela onipotência da juventude, pensando que consigo a lei da entropia paralisaria seu efeito e sua ação. Aconteceu com sua avó, sua mãe, mas sua própria imagem de jovem / mulher / atraente, tal como um quadro na parede, esta deveria manter-se imutável para todo o sempre. Aretha vinha ignorando os sinais de suas mãos, que estavam se tornando ásperas, enrugadas, apresentando manchas e com veias e tendões aparentes.
Na era das redes sociais - o momento em que estamos vivendo - onde a questão da imagem se tornou fundamental, visto que fotos falam mais que palavras e textos e a aparência nunca foi tão cultuada, a dor pela perda da beleza recrudesce e se intensifica em Aretha...
Todos nós já caímos várias vezes na grande ilusão, na desesperada esperança de poder surrupiar uma parcela do Todo para o nosso ego, algo que só pertence a nós e a mais ninguém. É ilusão achar que podemos guardar algo para nós mesmos; isso é uma evidente negação da única segurança que temos: a certeza de nos separarmos de tudo, o mais tardar, quando nos separarmos de nosso corpo.
(Dahlke, p. 71).
Lembrando ainda que a morte sempre traz consigo a possibilidade do renascimento. Assim é para Aretha, que, ao longo dos anos, junto com as marcas de idade, ganhou também segurança interna e força interior, as quais se tornaram perceptíveis no seu modo de agir. Além disso, seu timbre de voz assumiu nova impostação - um tom mais caloroso, intenso e empático - sinais do seu crescente empoderamento. Supostamente a confiança, o respeito e a admiração dos que a circundam são os subprodutos desta mudança, expressos no magnetismo da palavra “Dona”.
A vida é sempre uma faca de dois gumes. As batalhas que Aretha enfrentou ao longo de sua trajetória resultaram na perda de sua beleza física, mas fizeram dela uma mulher mais forte, mais humana e afetuosa, menos egoísta, mais afinada com a vida e com os desígnios cósmicos e por tudo isso, mais fascinante (não aos olhos de todos evidentemente, mas talvez para os olhos de alguns). Lembrando sempre que nunca podemos ter tudo. Se somos jovens, temos força e beleza, mas não temos sabedoria, que só advém com o aprendizado da experiência que o tempo nos traz.
A experiência nos deixa rotos, porém rutilantes... Fisicamente rotos, mas chamejantes em nossa luz interior... Não há o que fazer. É a dinâmica da vida. Os espertos, no bom sentido da palavra, não perdem tempo em reclamar pela perda do que quer que seja e seguem sequiosos por aprender nos tortuosos caminhos da vida terrena, que é breve, mas preciosa.
Seguir adiante, com todo o vigor da vida pulsando em nossas veias, mesmo sabendo que na próxima curva do caminho ela (a morte) pode nos surpreender. Nossa personagem Aretha segue também em frente, consciente de que seu amigo Narciso lhe pregou uma peça, a injúria de não ser mais bela. Ela já entendeu que não podemos sair desta vida como aqui chegamos. É preciso prosseguir da forma como nos é possível para honrar nosso compromisso com o Criador e conosco mesmos. É hora de cultivar os encantos do coração, atributo que fez de Branca de Neve a mais bela de seu reino.
Os encantos do coração nunca se desgastam e não estão sujeitos à Lei da Entropia. Ao contrário, eles podem ser cultivados continuamente e crescem à medida que nos autoavaliamos e nos empenhamos em ser uma pessoa melhor.
O compromisso diário de lapidação do espírito, eis o caminho que se apresenta: desvelar nossas mais profundas e escondidas vaidades, aniquilar nossos egoísmos ou o secreto / mesquinho prazer ao ver o outro se dar mal.
O ego, com seus blefes e engodos, nunca foi um bom conselheiro!
Referências
Dahlke, Rüdiger. Mandalas: Formas que representam a harmonia do cosmos e a energia divina. 8ª. ed., São Paulo, Editora Pensamento, 2002.