Perdeu-se uma oportunidade política que dificilmente se repetirá com estes dirigentes. Acima de tudo, o desentendimento concedeu em dez anos uma segunda oportunidade de ouro à direita (e agora também à extrema-direita) para, sem grande esforço nem mérito, voltar ao poder e produzir retrocesso.
Para quem recentemente publicou um livro intitulado Esquerdas do Mundo, Uni-vos! (Almedina, 2018), as últimas semanas foram particularmente desalentadoras. Mas também foram muito reveladoras.
Tive o privilégio de acompanhar de perto as negociações entre o BE e o PS. Uma análise superficial do discurso dos porta-vozes fez-me crer que provavelmente desde o início nenhum dos dois partidos quisera o acordo. No entanto, à medida que se aproximava a conclusão do processo e analisava a documentação disponível, comecei a suspeitar que a resistência ao acordo vinha sobretudo dos órgãos dirigentes do BE. Pela seguinte razão. O órgão que tomou a decisão é a mesa nacional constituída por quase 80 pessoas, as quais votaram unanimemente contra a viabilização do OE, quando as sondagens indicavam que quase 70% dos eleitores do Bloco defendiam a viabilização do OE. É possível imaginar um divórcio maior entre os dirigentes de um partido e o seu eleitorado? Não é ainda mais estranho que isso ocorra no partido que defende a democracia participativa? Não houve naquele conclave uma só voz e voto que chamasse a atenção para a gravidade deste divórcio, sobretudo no período dramático de crise sanitária que o país atravessa? Uma tal unanimidade, sobretudo nas actuais circunstâncias, não pode deixar de suscitar perplexidade.
As condições de hoje são diferentes das de 2011 e a posição do BE não significa necessariamente uma crise política, embora enfraqueça a posição do partido governante. Mas não deixa de ser frustrante que, mais uma vez, o BE se una à direita para derrotar um governo de esquerda. Sobretudo, um governo de esquerda que, ao longo dos últimos quatro anos, foi melhor que o anterior governo do PS, em boa medida devido à colaboração do BE.
Saliente-se que em 2011 o comportamento do PCP-PEV foi o mesmo do BE, o que não aconteceu desta vez. Tudo leva a crer que o PCP analisou melhor as consequências políticas do voto de 2011. Se a situação de 2011 era diferente da de hoje, isso não quer dizer que seja menor a responsabilidade política do voto do BE.
Em 2011, a crise era interna ao capitalismo (a crise financeira) e ao sistema político europeu. O BE, como partido anticapitalista, podia facilmente lavar as mãos. Ao contrário, a crise de hoje é externa, decorre da pandemia e está a atingir de modo descontrolado todos os países. Sabemos que as políticas neoliberais das últimas décadas visaram incapacitar os Estados de proteger eficazmente a vida dos cidadãos. A saúde pública, um investimento público crucial para a garantir o maior número de anos de vida saudável aos cidadãos, foi transformada em custo ou gasto público e por isso alvo das políticas de austeridade e de privatização. Pode afirmar-se que o SNS estava mais bem preparado há dez ou vinte anos para proteger a saúde dos cidadãos do que agora. Mesmo assim, e considerando tudo isto, não restam dúvidas de que, dada a dimensão da pandemia actual, nenhum governo poderia estar adequadamente preparado para enfrentar o grau de emergência de saúde pública que ela representa. Este é o facto político mais decisivo da conjuntura e só por cegueira política poderia não ser levado em conta. Tragicamente, foi isto o que sucedeu.
Por coincidência, o desentendimento entre os dois maiores partidos de esquerda consumou-se no mesmo dia em que, na vizinha Espanha, o governo de coligação entre o PSOE e Unidas Podemos apresentava uma proposta conjunta e com uma lógica orçamental semelhante à portuguesa, ainda que mais corajosa. Nas entrelinhas pode ler-se como se acomodaram as diferenças para travar o passo à direita e não irritar demasiado os países do Norte da Europa. O que faltou em Portugal para que o mesmo ocorresse? Posto isto, diga-se em abono da verdade que as exigências do BE são justas e visam proteger mais eficazmente a saúde dos portugueses e garantir-lhes uma mais robusta protecção do emprego e do rendimento dos portugueses que mais precisam dela. Tal como o PS se orgulha de ter contado entre os seus dirigentes um visionário consequente do SNS, o saudoso António Arnaut, o BE orgulha-se do mesmo, na pessoa do saudoso João Semedo, não menos visionário e consequente. Não pode pôr-se em causa que ambos os partidos defendem o SNS, mas o BE entende, e bem, que para defender a prazo o SNS são necessárias mudanças estruturais que têm a ver não só com remunerações e número de profissionais, mas também com carreiras e dedicação exclusiva. Por incrível que pareça aos portugueses depois de tanta azeda discussão, o PS pensa do mesmo modo, como aliás está no seu programa, só que entendeu, e bem, que, neste momento, as mudanças estruturais iriam causar um ruído político incompatível com a necessidade de concentrar a governação no enfrentamento da pandemia. Ambos os partidos sabem que Ordem dos Médicos está hoje na mão de forças políticas conservadoras vinculadas aos interesses da saúde privada e tem sido nesta crise a oposição mais insidiosa ao Governo. Para estes médicos (felizmente não para todos), a prioridade é a economia da saúde, não a saúde pública.
Sendo tudo isto evidente, não seria fácil um entendimento se houvesse, de parte a parte, vontade de negociar?
O BE tem igualmente razão nas questões laborais, sobretudo na reversão da precarização do trabalho que ocorreu com o governo de PSD-CDS. Também aqui o PS não está longe do BE, já que ele próprio se manifestou nesse sentido no passado. Mas também aqui a resistência do PS teve uma justificação que deve ser entendida, mesmo quando não se considere convincente. As alterações podiam levar os países do Norte da Europa, ditos frugais, a dificultar a aprovação do Plano Nacional de Recuperação e Resiliência (PRR) para 2021/2026, como aliás esses países tiveram o cuidado de avisar. Aqui o PS tinha obrigação de ler melhor a conjuntura e ver que há uma UE pós-“Brexit” relativamente distinta da anterior, ainda que nem sempre por boas razões. Havia condições para arriscar mais, libertar-se da tutela e não ser refém das eleições de Março próximo na Holanda. Mas sendo verdade que quem ganhou as eleições foi o PS e não BE, teria sido possível encontrar uma acomodação, por exemplo calendarizando as mudanças para uma data determinada.
A falta de visão política pode ter posto em causa o que mais se pretendia defender, a estabilidade que tornasse possível uma luta eficaz e consensual contra a pandemia e travasse tanto o avanço da direita como as facções mais dogmáticas dos dois partidos, que sempre estiveram contra entendimentos interpartidários.
Finalmente, o BE tem igualmente razão na questão do Novo Banco. O “negócio” com o fundo abutre que se apoderou de um banco importante não só é um roubo que para ser “legal” tem que ser total (extorquir até ao último centavo), como é um ataque à auto-estima de um país europeu posto na condição de república das bananas. Aqui, sim, havia uma incompatibilidade, e a única maneira de a superar seria pôr o Novo Banco fora do OE. Não era impossível mas, de novo, pressuponha vontade recíproca de pactuar, além de um pouco de sabedoria popular: vão-se os anéis, fiquem os dedos, sendo os dedos, neste caso, a estabilidade política em tempos de emergência sanitária extrema.
Perdeu-se uma oportunidade política que dificilmente se repetirá com estes dirigentes. A falta de visão política pode ter posto em causa o que mais se pretendia defender, a estabilidade que tornasse possível uma luta eficaz e consensual contra a pandemia e travasse tanto o avanço da direita como as facções mais dogmáticas dos dois partidos, que sempre estiveram contra entendimentos interpartidários. Acima de tudo, o desentendimento concedeu em dez anos uma segunda oportunidade de ouro à direita (e agora também à extrema-direita) para, sem grande esforço nem mérito, voltar ao poder e produzir retrocesso.