O ano 2020 iniciou sacudindo e ameaçando a humanidade no que vem se tornando, a cada dia, uma das mais perigosas pandemias que já enfrentamos: a disseminação do Coronavírus ou Covid-19. Estudos epidemiológicos já realizados mostram que sua rapidez de disseminação é desafiadora. O espalhamento global da doença vem colapsando sistemas de saúde de todos os países, sem exceção, inundando unidades de tratamento intensivo tanto com o número de doentes em estado grave, quanto com o tempo de permanência nas unidades, ocupando leitos e aparelhos especializados por mais tempo que outras enfermidades respiratórias. A doença não tem ainda medicação ou vacina, a atuação médica se exerce sobre seu sintoma mais letal: a dificuldade respiratória. A Organização Mundial de Saúde (OMS) elegeu a prevenção ou o isolamento social como principal arma para enfrentar a pandemia, diluindo sua ascensão, dando tempo aos governos das diversas nações de se organizarem para enfrentar este novo problema de saúde. Sem precedentes na história moderna, o isolamento social das pessoas tem sido adotado em todos os países (com exceção de profissionais de saúde e profissionais de serviços essenciais como alimentação, energia etc.).
As dificuldades econômicas ligadas ao isolamento social são óbvias, mas e as dificuldades psicológicas? Por que se isolar em casa, sozinho ou com familiares, por 15 ou mesmo 30 dias, se tornou tão assustador? Estudos psicológicos sobre os desafios ligados a quarentenas médicas, ou isolamento devido a doenças contagiosas, mostram o aparecimento de sintomas semelhantes aos de estresse pós-traumático, episódios de raiva e frustração, tédio e ansiedade, além de medo e até mesmo pânico. O medo da doença e da morte aumenta com a falta de informações claras e de atitudes consequentes por parte das autoridades, e assim aumentando também o pânico. Medo e pânico não são causados apenas por pandemias ou desastres naturais. Aspectos psicológicos interferem na exacerbação dessas vivências, desses sintomas. O isolamento social é um procedimento eficaz (comprovado na prática), mas saber dessa eficácia não neutraliza as problemáticas psicológicas individuais.
Atualmente virou lugar comum a análise de Erich Fromm sobre Ser e Ter. Em meados do século XX, Fromm denunciou uma mudança de atitude na sociedade, mostrando que as pessoas estavam substituindo o Ser pelo Ter e que isso era evidenciado na excessiva e constante dedicação aos seus desejos de consumo. Chegamos ao século XXI e isso é cada vez mais forte. As pessoas são definidas pelo que elas têm, pelo que conseguem, pelo que exibem. Desaparecem as proposições existenciais, o objetivo é conseguir sucesso, exibindo grifes e posturas socialmente admitidas como vitoriosas. Nesse contexto de humanidade substituída pela coisificação surge uma pandemia: o Covid-19 e ter que ficar em casa isolado leva ao reconhecimento da ponte caída: do Fazer como elo de ligação entre Ser e Ter. Nesse contexto, Fazer é a viabilização de metas, é o caminhar para o futuro. Isolado do convívio social, sozinho em casa ou convivendo apenas com familiares, o cotidiano aborta projetos e distancia futuros sucessos, consequentemente criando frustração, ansiedade e medo.
O presente se esvazia quando ele é percebido como preparação, como ponte para o depois, para o futuro. Para essas pessoas, o presente vivenciado como passagem nada significa sem seus referenciais de chegada, de meta. A pista de corrida só existe em função do pódio, da faixa de chegada. Preparados para atingir o depois, vivendo na expectativa de realizações futuras, os indivíduos se sentem perdidos, desperdiçados, amassados pela vivência entre 4 paredes. Perder as possibilidades de deslocar problemas é um impasse, é tensionante para a neurose, para a não aceitação de si e do outro. Ao perder esse recurso, pela obrigatoriedade do isolamento e do convívio restrito a familiares, frustração, ansiedade e medos se ampliam.
Substituir o Ser pelo Ter privilegia o Fazer que é a estrada para atingir o que se deseja ter. Sem esse caminho, sem direção, as pessoas se esgotam, não sabem o que fazer pois sentem ter perdido, ou com a ameaça de perder, tudo. A armadilha de só significar enquanto consumo, seja em termos das necessidades ou das disponibilidades, esvazia o humano, que, de uma maneira geral passa a ser mais uma mercadoria na prateleira a ser manipulada e consumida pelos detentores do poder, donos do Capital.
A grande reviravolta que pode surgir é a percepção do Fazer no contexto do Ser, gerando questionamento e transformação. A continuidade da percepção do Fazer no contexto do Ter manterá submissos, aniquilados pelos ditames do consumismo e de ordens pragmáticas que, por exemplo, para salvar jovens sacrifica os que já produziram, os aposentados. É o mundo do Ter, é a vantagem, a conveniência, a não solidariedade justificada pela crise, pela falta de leitos e pela improdutividade geral, onde o atualmente não produtivo deve ser descartado para que outros cresçam, tanto quanto para que a sociedade e a economia floresçam.
Ser é o único caminho do homem. No contexto do Ter, só resta viver agindo em função de meta do futuro e assim qualquer pedra que cai do céu, qualquer obstáculo no caminho é dizimador. Quando o indivíduo se posiciona, quando se detém em objetivos pragmáticos e contingentes - Ter -, se transforma em objeto de manobra de conglomerados, de ordens que o desumanizam e é levado a Fazer, virando peça das engrenagens que mantêm o sistema. É o clássico “o trabalho liberta” (Arbeit macht frei) dos campos de concentração, sem esquecer os Gulags soviéticos, tanto quanto as urbes americanas, europeias e latino-americanas.
Situações difíceis e inesperadas possibilitam enfrentamento ou pânico, tudo vai depender de se estar inteiro ou dividido na vivência do presente, que mesmo quando ameaçador pode possibilitar participação e coragem. Qualquer inesperado maltrata e atrapalha os que estão comprometidos com divisões. Para enfrentar o inesperado é necessário disponibilidade e inteireza, vivência do presente sem divisões, sem cogitações do depois.