Não deixemos obnubilar nossa consciência pela dor das perdas que acompanham o envelhecimento de forma que os ganhos não sejam percebidos.

Talvez pelo fato de vivermos em uma sociedade que supervaloriza a imagem e a aparência, principalmente na era das redes sociais, a perda da beleza talvez seja a dor que mais se faça sentir. Assim, na atualidade, o padrão estético dominante é aquele associado à exuberância e à pujança da juventude, enquanto que por outro lado, as mazelas do envelhecimento incluem a decadência física e os processos degenerativos a ela associados, seja de uma forma mais lenta e sutil ou de forma flagrantemente patológica, como é o caso do Mal de Alzheimer.

Talvez por isso mesmo, a arrogância da juventude, já que neste «estado» nos sentimos plenos de poder e força, condição que nos permite viver momentaneamente de uma ilusória invulnerabilidade, mantendo à distância e relegando para o outro a decrepitude, as limitações físicas e todos os demais eventos que corroem a nossa autoestima, os quais, “certamente” nunca baterão à nossa porta. Não temos assim dimensão de que na inexorabilidade do tempo, a juventude é um breve capítulo em nossa passagem pelo planeta, que, independente de nossa vontade cederá lugar a mutações e à metamorfose do corpo, a qual se impõe de maneira paulatina, mas implacável, até que sejamos obrigados a admitir a contragosto que nem tudo está sob o nosso controle.

Tomados e envolvidos pela necessidade de corresponder aos estereótipos de vidas perfeitas coroadas de sucesso da sociedade em que vivemos, nem sequer percebemos que paralelamente à inevitável decadência física, outro Ser vai sendo engendrado dentro de nós em consequência do enfrentamento das adversidades, nesse constante devir que é a vida. Este novo Ser que nasce nos interstícios da nova cara de velho(a) é mais forte, mais radiante e luminoso do que nunca antes conseguimos ser. Ele perdeu o nariz empinado e a arrogância da juventude, mas ganhou em autoconfiança, segurança interna, ponderação e uma clareza que não lhe deixa titubear, ciente que se tornou de seus alcances e limites.

Nosso novo Ser conhece bem os paradoxos da vida, isto é, que somos ao mesmo tempo fortes (somos capazes de resistir às provações da vida) e fracos (temos medo de tempestades; na maioria das vezes não temos qualquer controle sobre a perda de nossos entes queridos), somos grandes (quando exercitamos nossa generosidade) e pequenos (diante dos mistérios do universo e das forças da natureza).

Vale salientar que, nossa visão enquanto órgão do sentido, talvez seja o canal que melhor explicite este paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que passamos a sofrer os efeitos da presbiopia, apresentamos o olhar mais aguçado para a vida.

No culto à beleza da juventude que se esvai (ela é gratuita, não fizemos esforços e nem suamos a camisa para consegui-la), não nos damos conta do que é verdadeiramente essencial e esquecemos que a pessoa em quem estamos nos tornando é que faz toda a diferença. Isto é, vale mais a pena o que somos “por dentro” e não por fora. A essência e o conteúdo ao invés da casca. Esquecemos que talvez seja justamente este o objetivo de nossa passagem pelo planeta: o Ser em que nos tornamos com o nosso esforço e suor, até porque nosso invólucro carnal é apenas uma ferramenta que nos possibilita nossa experiência no planeta, o qual será deixado para trás um dia.

O processo de Ser dá trabalho. Exige muitas adequações, uma revisão contínua de valores, lutos e elaborações de perdas do que antes julgávamos como irrelevante e/ou permanente. Exige sucessivos confrontos com o espelho, que nos apresenta uma nova e dissonante imagem. Exige o reconhecimento e a assunção de outra pessoa que nos parecia até então estranha. Exige uma contínua lapidação de conduta, uma ainda mais intensa busca de sentido para a vida e um angustiante questionamento sobre a validação de nosso legado para o planeta.

Em resumo, pode-se dizer que o processo de EnvelheSer envolve galgar um degrau acima do patamar em que invariavelmente transitamos.

O poeta Mário de Andrade, através de seu poema, Minha Alma está em Brisa, nos brinda com uma belíssima reflexão sobre o que realmente importa na vida. Seguem abaixo alguns fragmentos:

Contei meus anos e descobri que tenho menos tempo para viver a partir daqui, do que o que eu vivi até agora.
Eu me sinto como aquela criança que ganhou um pacote de doces.
O primeiro comeu com prazer, mas quando percebeu que havia poucos, começou a saboreá-los
profundamente.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis em que são discutidos
estatutos, regras, procedimentos e regulamentos internos, sabendo que nada será alcançado.
(...)
Meu tempo é muito curto para discutir títulos. Eu quero a essência, minha
alma está com pressa... Sem muitos doces no pacote.(...)

Quero cercar-me de pessoas que sabem tocar os corações das pessoas...
Pessoas a quem os golpes da vida, ensinaram a crescer com toques suaves
na alma.
Sim... Estou com pressa... Estou com pressa para viver com a
intensidade que só a maturidade pode dar. (.....)

Vale ressaltar que, sempre que adentramos em uma nova fase do ciclo vital é necessário fazer o luto daquilo que perdemos e estamos deixando para trás. Assim é que o adolescente faz o luto da perda do corpo infantil e o adulto ao entrar para a senescência também faz o seu luto da juventude e das formas perfeitas que ficaram para trás. Sempre teremos a ganhar e viveremos mais felizes e em paz conosco mesmos ao aceitarmos a vida como ela é. Assim agindo, estaremos envelheSendo ao invés de simplesmente envelhecer e se tornar decrépito. A natureza é sábia e há um sentido para tudo, mesmo que a nossa consciência não consiga alcançar isto no tempo e lugar em que nos situamos.

O desafio de EnvelheSer está posto especificamente para a espécie humana, que teoricamente, ocupa o lugar de ‘seres mais evoluídos do planeta’. Você consegue identificar em que patamar se encontra?