Uma das principais características do humano é a carência afetiva. Ter a possibilidade de se relacionar, se complementar, se integrar com o outro são processos resultantes da carência de afeto, de contato, de diálogos e participação. Vivenciados enquanto possibilidade os processos carenciais permitem a percepção do outro, permitindo encontros/desencontros, descobertas.
Geralmente os processos de não aceitação de si, do outro e do mundo e consequentes autorreferenciamentos transformam a carência afetiva em alavanca e imã a fim de conseguir realizar suas necessidades de afeto. Ao coisificar, ao transformar os processos carenciais, imanentes ao estar vivo, em objeto, coisa, plataforma estabelecida para realização de desejos, se exerce essa transformação na qual a carência afetiva passa a ser necessidade de afeto. Esse processo de coisificação estabelece critérios, metas, padrões do que se necessita para resolver as faltas, vazios e desejos.
Para a psicanálise, para toda a psicologia de orientação freudiana, ser carente é um aspecto significativo, um sintoma das configurações neuróticas que assolam o indivíduo. Essa conclusão é fundante de seus processos terapêuticos, de suas orientações teóricas.
Acontece que se é carente como se tem olhos, mãos e pés. A carência é intrínseca ao ser humano, é sua possibilidade relacional. Quando negada, a carência afetiva se transforma em um apêndice, um referencial à partir do qual tudo é configurado, percebido, transformando-se assim em necessidade de complemento, satisfação e realização de dependências, proteção para medos e incapacidades. Essa vivência do necessário cria apegos, faltas, medos, usos e desejos. Sentir falta de alguém que satisfaz desejos sexuais, de alguém que realiza compromissos sociais, que represente e signifique, que pague contas, ajude, respeite, satisfaça passa a ser o grande propósito da vida. A própria sociedade regulamenta esses processos, criando parâmetros e instituições para esse fim. A estabilidade afetiva, consequentemente o bem viver em sociedade, resulta de casamentos, uniões que suprem essa falta, que atendem essa necessidade. Estar sozinho é prova de incapacidade, é índice de fracasso: pobreza, velhice, feiúra, ignorância, que impediram de se tornar desejável e assim ser escolhido, formalizando o desejo de encontrar o par, o complemento, a união, o engajamento no mundo das pessoas que significam.
A possibilidade de se movimentar, de perceber, de falar, ouvir, dialogar é estabelecida pelo próprio estar vivo, não são necessários andaimes, senhas, códigos, pontes para que isso se realize, é intrínseco ao processo da vida, apenas quebrado por acidentes ou configurações pré-natais, genéticas, geralmente raras e mesmo assim sempre compensadas ou até neutralizadas pelo desenrolar de outras possibilidades e configurações. Quando essas possibilidades intrínsecas ao humano passam a ser contingenciadas em função de valores, considerações, conveniências e inconveniências, se cria o denso vazio, abismo que tudo traga: é a carência afetiva transformada em necessidade. Saber o que é bom, o que é ruim, o que é correto ou incorreto como determinantes iniciais de processos relacionais estabelece a priori.
Essa antecipação esvazia o presente à medida que o esconde, tampa, cobre pelas superposições relacionais. Por exemplo, o outro diante de mim é o que serve ou não serve para encaixar em meus esquemas e propósitos. A própria idéia de encaixar, servir é destruidora das condições vitais e dinâmicas. Essa ideia é também o que vai criar os critérios do válido, do inválido, do possível, impossível, adequado, inadequado. Coisifica-se o outro, transformando-o em objeto. Desse processo resulta utilização, destruição, tanto quanto seres solitários que sentem falta de amor, de afeto, de companhia. Sentir-se só é estar fechado em si mesmo, autorreferenciado em suas não aceitações e desespero, procurando alguém que possa ser utilizado por submissão, que possa ser cooptado por vantagens, enganado por desespero e apto a suprir faltas, destruir medos e ser a bengala necessária que se pode comprar ou roubar.
A carência afetiva configura o outro no sentido de possibilidade ou de necessidade de relacionamento. Sendo intrínseca, assumida, a carência possibilita o outro; caso contrário, como necessidade de relacionamento, ela é uma barreira, começando o outro a ser uma meta ou um obstáculo.