Lendo Trem Noturno para Lisboa de Pascal Mercier encontrei uma interrogação, uma dúvida, uma perplexidade interessante, mas profundamente reducionista, redutora de vivências e processos, apesar de sua roupagem literária com debruns existenciais e cores questionantes. O autor, por meio de seu personagem, perguntava: “se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?”
Pensei: nada há dentro de nós, desde que não há dentro nem fora. A crença nessa espacialização didática - exterior, interior - é redutora dos processos, mas apesar disso é inteligível o que o autor pretende, que é falar de sonhos, memória e desejos. Nesse sentido, teríamos “dentro de nós” memórias, desejos e sonhos satisfeitos e insatisfeitos. Dentro de nós, também, segundo ele, teríamos vazio, frustração, realização. O que é o resto disso? O que não se realiza? Ou será o que não pode ser quantificado?
Imaginar que existem limites para realizar vivências é uma busca de quantificação redutora do humano, tanto quanto transformadora de vivências em processos quantificáveis. Quanto se ama? Quanto se sofre? Os dados qualitativos, se reduzidos a quantidades, se transformam em rótulos, índices para marcar o suposto labirinto de realização e satisfação.
Processos podem ser quantificados, mas não podem ser reduzidos a essa quantificação sob pena de se esgotarem enquanto continuidade. O aquecimento de um corpo até 40ºC, por exemplo, é uma medida que ao ser registrada não interrompe o processo de aquecimento, pois é um registro do mesmo. Uma outra medição do aquecimento do corpo, além dessa já realizada, é outro limite estabelecido, outro instante da medida. A fome satisfeita por uma quantidade de comida, interrompe o processo fome, sacia, mas não se pode entender a fome pela sua saciedade. Pensar que a solução, o resultado, o saciar, o aplacar muda o processo é a ilusão do resultado. A continuidade jamais cessa, medida ou não, ela continua. Processos históricos sociais e histórias de cada um de nós estão a mostrar que as vivências ultrapassam datas, limites e marcos históricos. Continuamos escravizados, apesar de pelas leis não haver mais escravidão, mas os processos de escravização, nas mais variadas formas, continuam.
Processos não se esgotam em registros, os dados relacionais existem e estruturam a sua continuidade. O que é quantificável só o é quando medido. A medida expressa um momento do processo, mas não conta sua história, não lida com seus estruturantes. É apenas um rótulo que define momentos.
Costuma-se falar de interioridade como se existisse um lugar do psicológico dentro do organismo humano (mente, inconsciente etc.) e por extensão, subjetivo é o que está dentro e objetivo o que está fora. Mas, interior e exterior não existem, o que existe é uma relação, é o homem no mundo, percebendo, categorizando, conhecendo. Perceber é se relacionar. Os marcos civilizatórios, históricos, econômicos ou individuais sempre rotulam, indicam o que ocorreu sem expressar as intermitências processuais. Nesse sentido, o devir, o processo, a continuidade são impossíveis de medir - são imensuráveis. O dado relacional é o configurante que tudo açambarca e define, embora nem sempre seja percebido. É preciso se deter no sutil para visualizar a compacidade do denso, para exercer a vivência do presente, um processo que tudo abrange, sem vestígios. Não deixar vestígios é o esgotar-se em si mesmo que caracteriza o vivenciado, o integrado.