Palácio do Povo, 16:00, ano 2018, 12 de Dezembro, Xi Jinping, Imperador da China do XXI entra num imponente salão em Beijing onde eu e um grupo de ex-Chefes de Estado e de Governo o aguardávamos pacientemente. Clarifico que não seria propriamente um dialogo interactivo, erudito e civilizado. O Imperador da nova China imperando sobre 1.400.000.000 de súbditos aparenta muita serenidade e auto-confiança palpável no seu rosto e gestos suaves. Cumprimenta os visitantes demasiado generosamente e sublinha o suposto prestígio internacional dos seus visitantes.
Xi Jinping falou calmamente a partir de notas preparadas, fez o historial dos progressos dos últimos 40 anos, da Nova Rota da Seda e do Banco Internacional de Infraestruturas. Sublinha a cooperação e solidariedade internacionais com vantagens para todos e diz com uma modéstia estudada que parece ser sincera que a China, hoje a segunda maior economia do mundo, continua a ser um pais em vias de desenvolvimento.
Revelando finesse diplomática, Xi Jinping não personalizou criticas a nenhum líder mundial e não pronunciou a palavra EUA. Revelou serenidade e elegância de estadista mundial, contraste com o Rei sem roupa que ocupa a Casa Branca em Washington, imprevisível, instável, protecionista e unilateralista.
Xi Jinping reafirma a importância da cooperação internacional e do multilateralismo e Trump declara a doutrina ou o slogan US First, abandona Tratados internacionais e ataca instituições como a ONU, União Europeia, NATO, etc. E abre a guerra de tarifas contra a China e aliados históricos como Canadá, Alemanha, Índia, Japão, etc. Os Indianos estão confusos e desapontados. O namoro Trump-Modi durou apenas algumas semanas. O Primeiro Ministro Abe do Japão, face ao imprevisível aliado, procura dialogo e cooperação mais estreita com a China.
A minha primeira visita a China foi há 42 anos, pouco depois da morte daquele que foi um grande estadista, o premier Zhou Enlai (ou Chou En-lai), falecido no dia 8 de Janeiro de 1976. Apresentei condolências na Missão Permanente da RPC junto a ONU, um edifício ao lado do Lincoln Center no centro de Manhattan.
Eu tinha chegado a Nova Iorque na segunda semana de Dezembro de 1975 para advogar a causa de Timor-Leste junto ao Conselho de Segurança da ONU. Faltavam duas semanas para completar 26 anos de idade; nunca tinha estado numa grande cidade e nunca tinha visto neve mas nem por isso fiquei excitado; não gostei do frio e da neve, escorregava e caía quando quando caminhava os 100 metros do então Tudor Hotel ($20 por noite por um quarto muito pequeno) até a sede da ONU. E foi a minha primeira experiência com a ONU.
Em 1975 o meu país de gente simples e pobre passou a ser mais uma das muitas vítimas da Guerra Fria, num conflito que durou 24 anos. As grandes potências transformaram a hipocrisia numa arte refinada e nenhuma pode reclamar o manto de princípios - os EUA e a defunta URSS provocaram as maiores barbaridades do pós-Segunda Grande Guerra, os EUA em guerras de cruzada anti-comunista em todas as regiões do mundo, e a URSS sobretudo em chacinas internas contra inimigos reais e imaginários.
Quando em 1990 caiu o Muro de Berlim e a Guerra Fria foi oficialmente declarada terminada, muitos foram os ingénuos que acreditavam que iríamos viver uma nova Idade de Princípios e de Razão, um novo período áureo em que as grandes potências do Mundo desmantelariam os seus arsenais nucleares, os vendilhões de armas fechariam esse negócio sujo, que os direitos humanos seriam respeitados em todo o mundo.
A China e a Rússia de Putin nunca fingiram observar direitos humanos, pelo menos os direitos humanos como convencionalmente definidos pela democracia liberal, e nunca pregam lições a ninguém. Norte-americanos (EUA e Canada) e europeus, liderados pelo Reino Unido e pela Franca, mais a Alemanha, Itália, Espanha, Polónia, Bélgica, Austria, Suécia, etc que se elegeram pregadores dos valores universais de direitos humanos e democracia, botam gasolina no fogo com os negócios altamente lucrativos de venda indiscriminada de armas contribuindo para as guerras na Síria, Líbia, Iraq, Yemen, Sudão do Sul, Afeganistão, etc e etc.
O mundo não ficou melhor. As grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia continuam rivais e inimigos, modernizam o seu arsenal nuclear, fazem guerras por procuração como sempre o fizeram e como fazem na Síria; Israel continua o enfant privilegiado ao qual assiste o direito de possuir armas nucleares (tem 200) enquanto ao Irão se lhe proíbe tecnologia nuclear para fins pacíficos, a mesma tecnologia que a Franca, Alemanha, o Japão e outros possuem para reduzirem a sua dependência do petróleo.
Na minha primeira visita a China em Janeiro 1976 para pedir apoio diplomático para a luta de Timor-Leste pela auto-determinação fui recebido cordialmente com todas as atenções ao contrario do que acontecia nos EUA, Austrália, Nova Zelandia, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, etc., onde as portas estavam fechadas e onde mesmo os mais insignificantes jovens diplomatas tinham instruções para não me receberem. Excepções honrosas: Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa.
Em 1976 fiquei instalado no Beijing Hotel, o melhor da época. Ainda la está, sobreviveu ao frenesim da modernização da China dos últimos 40 anos que transformou completamente aquele País-Continente de cinco mil anos de civilização. Das minhas instalações olhava para a avenida onde se movimentavam lentamente dezenas de milhares de pessoas em bicicleta, o veiculo de transporte pessoal comum (mais saudável, menos poluente) da maioria dos Chineses. E todos tinham o vestuário uniforme, unissexo, o estilo Mao de gola fechada. As cores mais comuns eram o verde e o azul escuro.
Sentia-se que algo estaria para acontecer. A loucura da Revolução Cultural durou 10 anos e o povo Chinês que sobreviveu às calamidades inimagináveis provocadas por políticas do seu Grande Timoneiro era em 1976 um povo profundamente traumatizado, o medo era palpável, lia-se nos seus rostos.
A decisão de Mao Tse Tung (Mao Zedong) de fazer catapultar a China de um País agrário para um País industrializado com o chamado Great Leap Forward (1957–1960) foi uma catástrofe que dizimou pela fome milhões de pessoas. Alguns anos depois, o povo ainda profundamente afectado física e psicologicamente pela tragédia de 1957-1960, foi assaltado por outra loucura, a Revolução Cultural (1966-1976) supostamente para contrariar tendências capitalistas no Partido Comunista.
O lar tradicional onde tudo era partilhado, as refeições simples de arroz e alguns legumes, os segredos mais íntimos, desconfianças e medo se instalaram. O lar deixou de ser lugar intimo de amor e confiança. Famílias foram destroçadas. Para provarem seu espírito revolucionário filhos denunciaram pais de alegadas atitudes contra-revolucionárias. Milhões de pessoas (alguns especialistas alegam 50 milhões) foram condenadas aos infames campos de reeducação (os laogai) onde se alega 20 milhões teriam perecido.
Quando visitei a China em pleno inverno de 1976 esperava-se a morte eminente do «Grande Timoneiro». Era uma questão de meses. Mas nos bastidores do PCC tramava-se já contra o chamado gang of four, liderado pela esposa de Mao que veio a falecer em Setembro desse ano, poucos meses depois da morte de Zhou Enlay. Hua Guofeng, uma figura apagada, foi a substituição temporária. A grande viragem esperada veio a acontecer quando Deng Xiaoping assumiu a Liderança máxima da China (1978-1989).
Inspirados pelos acontecimentos na URSS e a Primavera política na Europa do Leste, em 1987 surgiram as primeiras contestações estudantis e movimentos de protestos pro democracia na China. Deng Xiaoping ordenou a repressão dos manifestantes de Tian Nianmen e o movimento rapidamente se dissolveu.
O gênio de Deng Xiaoping foi decidir libertar a criatividade e resiliência do povo Chinês das amarras ideológicas do Marxismo-Leninismo dogmático e abrir as portas ao investimento estrangeiro. Lançou assim um novo Great Leap Forward desta vez bem pensado, bem planeado e muito bem gerido.
A China que eu conheci em 1976 transformou de uma forma vertiginosa em apenas 40 anos. E desta vez, tendo aprendido com os erros de Mao, não se cometeram erros que resultaram nos graves crimes das décadas anteriores. Den Xiaoping e Xi Jinping falam da nova China do Socialismo com características Chinesas mas seria mais exacto descrever esta nova doutrina como capitalismo guiado do Estado. Mas pouco importam os nomes que queiramos dar a experiência Chinesa.
Em 40 anos 700 milhões de Chinesas foram libertos de extrema pobreza. Oficialmente ainda existem 30 milhões de pobres e em 2019 mais 10 milhões sairão da categoria de extrema pobreza. Cerca de 400 milhões de Chineses já pertencem ao grupo de rendimento medio.
Não temos que confiar nas estatísticas Chinesas, mas uma observação casual seja na China ou pelo mundo nos esclarece sobre a nova China. Muitos direitos consagrados na Declaração Universal de Direitos Humanos estão realizados na China, um é a livre circulação de pessoas. Em qualquer dia da semana ou hora do dia, dezenas de milhões de Chineses da classe média estão a reciclar o dólar em hotéis, restaurantes, bares, lojas de artesanatos, vestuários na Ásia, África, América latina. etc. Turistas Chineses mais ricos preferem a Itália, Franca, Espanha, Portugal, Reino Unido, EUA, etc onde ficam em hotéis 5 estrelas e compram milhares de relógios Rolex e outras marcas de luxo.
Notar que os milhões de turistas que circulam no mundo e dezenas de milhares de estudantes Chineses que estudam nos países democráticos não se converteram para a democracia liberal e não pediram asilo politico. Quase 100% regressam ao seu País, a China supostamente não livre, totalitária.
Mega empresas e bancos Chineses investiram e continuam a investir dezenas de biliões de dólares em todos os continentes. O dólar americano e as bolsas de valores nos EUA e em todo o mundo entrariam em colapso se a China retirasse os triliões de dólares investidos na dívida americana. Mas igualmente os governantes Chineses sabem que a prosperidade da China depende da prosperidade e estabilidade dos seus parceiros.
A China enfrenta complexos desafios na sua zona de interesse vital. Para além do problema nuclear da Coreia Norte que sempre foi para a China um problema prioritário por razões obvias e que ao contrário do que foi proclamado por Donald Trump não registou progressos credíveis desde a cimeira de Singapura entre os dois lideres.
As reivindicações territoriais Chinesas no Mar do Sul da China não tem uma base histórica e jurídica credível que prevaleceria no Tribunal Internacional de Justiça caso este contencioso regional fosse submetido à apreciação naquela instituição multilateral.
A China não cederá um palmo e nem tão pouco os outros países cujas reivindicações chocam ou sobrepõe com as da China cederão. A introdução no Mar do Sul da China de unidades navais e aéreas de potências extra regionais, EUA, Inglaterra e Austrália, não intimidam a China, e aumentam exponencialmente os riscos de confrontação. Um acidente aéreo ou naval entre as unidades que circulam no Mar do Sul da China pode rapidamente escalar para um conflito maior.
Um desafio complexo para a China é a questão de Taiwan. As forças de Chiang Kai-shek derrotadas na guerra civil ali instalaram o governo de Kuomintang (KMT) que reclamava ser o Governo legitimo de toda a China. Portanto, os nacionalistas de KMT não reclamaram a independência ilha e durante décadas o governo de KMT detinha a representação da China na ONU e o lugar privilegiado de membro permanente do Conselho de Segurança. Em resumo, Taiwan não tem mais direito à separação da China do que Hong Kong ou Macau. Mas a China deve respeitar, em letra e espirito, os Tratados de transição desses dois territórios para a soberania Chinesa.
No passado Taiwan fazia uso do checkbook diplomacy literalmente comprando o reconhecimento diplomático de países menos ricos. Mas a partir da década de 90 a situação começou a inverter-se a favor da RPC e hoje o regime de Taiwan esta quase completamente isolado.
A reunificação muito desejada na China e por muitos Taiwaneses poderá acontecer no futuro e acredito que as autoridades Chinesas e de Taiwan saberão encontrar uma formula que será aceite pela maioria dos Taiwaneses, uma fórmula do modelo Hong Kong plus, isto é e, um modelo que garanta a Taiwan um estatuto de quase soberania dentro de uma única China.
Em 1976 vi uma China empobrecida, um povo traumatizado. A China que hoje conhecemos é uma China muito diferente e muito melhor, mais forte, prospera, prestigiada com influencia global.
O Mundo bipolar da Guerra Fria que opunha os EUA a URSS superpotência nuclear mas não econômica, foi substituída pelo mundo bipolar China-EUA com uma China economicamente poderosa, global, e apoiada por dezenas de milhões de investidores e empresários Chineses, tecnologias avançadas e inovações, rivalizando com grandes marcas como IPhone e Samsung.