Quem quer que trabalhe com mulheres que sofrem violência do parceiro, seja na área da Assistência Social, da Psicologia ou da Saúde, já se deparou com o fenômeno bastante comum das usuárias não conseguirem colocar um término à situação de violência que estão vivenciando, seja saindo da relação ou até mesmo ressignificando esta última. Assim, elas procuram o serviço, apresentam suas queixas, são orientadas, recebem apoio psicossocial e jurídico, em alguns casos é feito boletim de ocorrência no próprio serviço de saúde, no entanto, ao voltarem para casa, após um período de calmaria, as brigas continuam e as cenas de violência se repetem (Braghini, 2.000). O tão conhecido ciclo da violência de casais ilustra perfeitamente esta dinâmica.

O fenômeno instiga o profissional à reflexão porque, se por um lado trata-se de uma violação de direitos e uma aniquilação do ego, por outro lado algo parece mantê-las prisioneiras daquela situação (ou apoiadas àquele vínculo), já que não conseguem encontrar uma saída e as alternativas apontadas no serviço procurado não parecem ter sido úteis e/ou satisfatórias.

Por que é tão comum que mulheres não consigam sair de uma relação de violência ou por fim a um relacionamento abusivo? São múltiplas as variáveis que concorrem para esta questão.

Primeiramente, não vamos esquecer que o relato verbal de uma queixa é apenas um lado da questão. Em Psicodrama isto é chamado “trama explícita”, sendo que corresponde à expressão mais racional do conflito, o que nas palavras da usuária, que chamarei Maria, seria mais ou menos assim:

“O João, quando bebe me bate e me obriga a fazer sexo com ele (isto, quando ele consegue; quando não, tenho que fazer de outro jeito). Cansei de viver apanhando. Quero me separar.”

O outro lado da questão é chamado de “trama oculta”. Tal conteúdo não é dito pela usuária ao entrevistador/ profissional que a está atendendo, visto que diz respeito a aspectos que são em sua maioria inconscientes, mas pode se depreender das entrelinhas de seu relato ao longo de vários atendimentos. Tentando dar voz a este outro lado encoberto, encontramos algo parecido com isso:

“Eu não quero me separar. O João me bate, mas fora da bebida ele é um ‘bom’ marido. Não deixa faltar comida em casa. É um bom pai. Ademais, como seria a vida sem ele? Será que eu vou conseguir criar meus filhos sozinha? Além disso, será que outro homem vai olhar para mim? Também, o João já ameaçou várias vezes de me matar se eu separar dele. Tenho medo que ele cumpra a ameaça.”

Ou seja, para não correr o risco de morrer fora de casa, a mulher arrisca-se a morrer em casa. Observamos que nesta questão o paradoxo está presente o tempo todo.

A ambiguidade que vimos acima é muito mais profunda e entranhada do que o observador externo possa imaginar, pois a mulher que sofre violência também mantém com seu parceiro uma cumplicidade que vai muito além dos sofrimentos que ele lhe faz passar. Frequentemente ambos provêm de lares violentos e uniram-se ainda na adolescência para escapar do aniquilamento e do domínio do pai-patrão. Assim, antes que João assumisse o lugar do pai-patrão, proporcionou a Maria um apoio real quando ainda ambos se identificavam no desamparo e eram parceiros na luta pela sobrevivência.

Perscrutando de relance seu passado, verificamos que mulheres que sofrem violência, em geral provêm de lares onde a violência real ou simbólica é a única alternativa conhecida de comunicação e a única forma de se sentir percebida. Algumas viram sua mãe contrafeita em uma discussão abaixar a cabeça e ouviram o pai dizendo: “É melhor calar a boca”. E para não deixarem sair as palavras, cerraram as mandíbulas e desenvolveram um forte mutismo e à noite, sem o saber, a prática do bruxismo, que só muitos anos depois o dentista veio lhe falar que seus dentes diminuíram de tamanho. A mãe então diz para a filha: “Casa não, filha!” E a filha, como prova de lealdade e fidelidade, mantém-se solteira.

A questão da transgeracionalidade da violência é um tema comum e objeto de muitos estudos de terapeutas de família (Cerveny, 1992). A repetição de padrões interacionais de violência transmite-se de geração a geração e a mulher, para ser fiel ao legado e não se sentir a “filha desnaturada”, acaba reproduzindo a história da mãe. Vale salientar que, como única realidade que lhe foi apresentada e viveu, este parece ser para ela o único caminho a seguir, resultando difícil recriar sua realidade.

Também faz parte de sua cultura mandatos do tipo: “Ruim com ele, pior sem ele”. Há outro ditado, no entanto, que diz: “Antes só do que mal acompanhada”. Confusa, Maria se debate entre essas duas alternativas, mantendo-se paralisada sem saber que caminho seguir.

A mulher que sofre violência é, sobretudo, insegura e falta-lhe confiança em si mesma. Ela não viveu a experiência do amor incondicional (pais que amam incondicionalmente seus filhos fazem-no simplesmente por aquilo que são e não exigem nada em troca do seu amor) logo, não conheceu o respeito. Não aprendeu a se respeitar e a se fazer respeitar. Desde muito cedo, fez parte de sua experiência de vida que algum outro (na maioria das vezes, trata-se de um outro masculino) lhe subjugasse, humilhasse, vilipendiasse o seu ser no mais amplo sentido do termo e, se quisesse um pouco de carinho e aceitação, teria que fazer alguma coisa ou até mesmo pagar para conseguir isso. Com esta experiência de vida, um contexto sem violência, onde é possível simplesmente ser amada sem pagar pedágio, um contexto com outros códigos de comunicação, outras condutas, outros modos de ser e de viver, soa-lhe no mínimo falsamente ilusório e irreal.

Não vamos nos esquecer que esta é a única vida que Maria conhece. O João é ruim, mas é a sua referência de identidade. Ser a mulher do João é melhor do que não ser nada. A perspectiva de não existir e de perder este ‘apoio’ é tão terrivelmente alienante e avassaladora, que é melhor permanecer onde está: ao lado do João. Mulheres que sofrem violência, em geral possuem uma profunda lacuna na estrutura de suas personalidades e temem desesperadamente a solidão. Falta confiança em si mesma para caminharem sozinhas na vida. Ademais, não se sentem capazes de dar conta das responsabilidades (não percebem que já carregam um ‘caminhão’ às suas costas). Viver à sombra de outro é mais confortável e seguro, embora o preço que se pague para isso seja sempre muito alto, pois implica na abdicação de si mesma.

Há que se considerar ainda o medo de caminhar pelas próprias pernas, o medo de cometer erros, o medo de fazer escolhas (a escolha errada), por isso é sempre mais confortável contar com um ‘apoio’ ao qual se possa atribuir a responsabilidade pelas escolhas realizadas, mesmo correndo o grave risco de ser aniquilada por este mesmo ‘apoio’, física e emocionalmente falando.

Por todo o acima exposto, fica evidente que há uma fragilidade emocional a ser enfrentada e superada. Se você é um profissional da área e deseja ajudar uma mulher que sofre violência a libertar-se do jugo e da opressão em que vive, terá que primeiro ajudá-la a existir, a se descobrir como pessoa e, em um terceiro momento, a se fortalecer. Vale lembrar que o casal que vive em situação de violência torna-se um PAR SIMBIÓTICO, tão dependente um do outro que, quando um tenta se separar, o outro se torna drasticamente afetado (Ministério da Saúde, 2002).

Outro aspecto bastante comum que mulheres usam para justificar sua permanência na relação seriam os sentimentos de piedade (em suas palavras, “pena” ou “dó”) que dizem sentir pelo parceiro: “O João não vai conseguir viver sem mim se eu me separar dele. Coitado! Vai cair na sarjeta. Não terá ninguém para socorrê-lo” (por mais de uma vez, Maria abandonou tudo que estava fazendo e até mesmo seu emprego para ir socorrer João). Isto ocorre porque mulheres que sofrem violência muitas vezes desenvolvem vínculos materno-filiais com o parceiro, o que também é uma forma de existir, pois elas dependem da dependência dele.

Em geral a usuária, quando procura um serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência, relata as atrocidades que seu parceiro cometeu consigo, mas não fala da profunda dependência que a mantém presa a ele (e vice-versa). Devido a isto, é comum se deparar com casais que vivem separados sob o mesmo teto ou que são até mesmo separados judicialmente, mas que continuam coabitando no mesmo espaço físico. Há que se lembrar ainda que o rompimento de um vínculo é sempre uma experiência dolorosa e será evitada sempre que possível. A perspectiva da separação é sempre uma perda e um luto a ser elaborado, pois este parceiro do qual ela está se separando é aquele mesmo com o qual sonhou construir uma família e ser felizes até que “a morte os separe”. Admitir que “o quadro se quebrou” ao ter se equivocado em sua escolha ou que no mínimo idealizou o João sem perceber seus defeitos atribuindo-lhe a responsabilidade por sua felicidade, tudo isto é um terrível e insuportável ‘desgosto’ (uma frustração sem precedentes), que muitas mulheres não estão dispostas ou ainda não estão prontas a passar por isso.

Assim, uma usuária que chega até nós e relata uma situação de violência que esteja vivenciando, possui todo um universo atrás de si que devemos considerar, embora ela não faça referência explícita ao mesmo, visto que são aspectos em sua maioria inconscientes. É necessário abdicar de nossas expectativas, olhar com os olhos dela e sentir como ela sente (ou seja, praticar a empatia no mais amplo sentido do termo) para se ter a dimensão dos seus entraves.

São questões arraigadas, tão antigas quanto profundas, que ignorar estes aspectos seria no mínimo puerilidade.

A mulher que sofre violência caminha no seu próprio tempo (que é diferente do tempo do profissional) e possui o seu próprio ritmo que precisa ser respeitado. Aos poucos, ela precisa ir reconhecendo e integrando os aspectos obscuros de sua personalidade, suas potencialidades inatas, até que possa compor o seu próprio mosaico e se sentir forte o suficiente para estar pronta então para dar o seu grito de liberdade. Muitas vezes o grito de liberdade que ela consegue dar é dizer simplesmente: “Não pisa no meu dedão!” Não é preciso dizer que cada passo, cada conquista, precisa ser tratado como uma grande vitória.

Sobretudo, quem está com ela deve ser capaz de oferecer continência e levá-la a conhecer a experiência do amor incondicional e, a partir disso, descobrir a sua própria dignidade, seu lugar no mundo (que é seu por direito de nascença). A autoestima é algo que não se ensina através da palavra, mas uma atitude que brota por si a partir desta nova matriz que a relação terapêutica é capaz de proporcionar.

É um longo caminho a ser percorrido até que a mulher consiga, de fato, por fim a um relacionamento que não é bom para si e não lhe ajuda a crescer.

Muitos rostos de Maria perfilados me ajudaram a compor sua história, cada qual com seu fragmento. Para enfim entender “porquê fica”, resta abdicar-se de toda e qualquer história preconcebida ou roteiro pré-fabricado, deixar-se de lado para estar plenamente presente, desenvolvendo um estado de ‘prontidão’ para ouvir e estar com ela pelo tempo que for necessário.

Paciente aprendizado.

Referências:

  • BRAGHINI, L. Cenas Repetitivas de Violência Doméstica: um impasse entre Eros e Thanatos. Campinas, Editora da UNICAMP / Imprensa Oficial. 2000.

  • CERVENY, C.M.O. A Família como Modelo: influência da repetição de padrões interacionais das gerações anteriores nos problemas da família atual. Tese de Doutorado. PUC-SP, 1992.

  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Políticas de Saúde. «Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço». Cadernos de Atenção Básica n.08, Brasília, 2002.